sexta-feira, 3 de julho de 2009

Arquivo do tempo

Arquivo do tempo

Sitônio Pinto

A nova geração de jornalistas e de leitores não sabe por que os velhos chamam A União de “A Velha”. Mas no frontispício já se lê: ano CXVI, ou, trocando em miúdos, ano cento e dezesseis. O terceiro jornal mais antigo em circulação no Brasil. Para muitos de nós, seu primeiro jornal. Eu mesmo comecei aqui, há 29 anos, quando Nathanael Alves era superintendente e Gonzaga Rodrigues seu diretor-técnico, Agnaldo Almeida na editoria. A gente sai, vai para outros jornais, mas um dia volta para A Velha. Ela é a matriz, a escola; um velho amor, um xodó inesquecível. Depois, o jornal é do Estado; como somos todos comunistas, isso é um fato importante. N’ A União não se tem patrão.
Às vezes A Velha vira jornal do governo, quando algum gestor da coisa pública confunde as coisas e bota A Velha para trabalhar politicamente, sem respeitar seus cabelos brancos derramados nas páginas. Mas dá no que deu, ainda recentemente: processo na justiça eleitoral por uso indevido da coisa pública, e a conseqüente cassação mais a posterior inelegibilidade. Eu acho é pouco.
A União trabalha porque gosta, pois há muitas eras já completou seu tempo de aposentadoria. Já excedeu até o limite imposto pela lei dos sexagenários, que deu aos escravos o direito de parar de trabalhar de graça para os senhores escravagistas ao completarem 60 anos. Mas sem aposentadoria. E com perda da comida, dos trapos que lhe cobriam a nudez para não escandalizar a família do Sinhô, e do teto da senzala. Uma aposentadoria sui generis, onde quem mais ganhava era o patrão, que se via livre de um preto velho de poucas forças.
O Brasil tem uma dívida grande e antiga para com os descendentes da servidão escrava. Contabilizem-se os salários de gerações de cativos que trabalharam de graça, sem direito a férias nem aposentadoria, mais os danos morais irreparáveis, e se verá o montante do débito para com essa multidão de trabalhadores já mortos, que não têm como receber sua indenização. E alguns filhos da burguesia - e de outras mães - ainda reclamam pelo fato de um quantum das vagas nas universidades ser destinado aos descendentes de índios e de africanos. Os primeiros, primeiros senhores dessas terras, que foram exterminados para dar espaço à colonização; os segundos, que perderam sua liberdade, sua pátria, sua cultura e sua dignidade para levantarem, com seus braços, um “novo mundo” que ainda não disse aos povos o que veio fazer.
A velha União é uma testemunha desses tempos, nascida ainda com as portas da senzala entreabertas para a saída de seus últimos ocupantes. Aleitou os filhos brancos da casa-grande e ensinou-lhe as primeiras letras para essa aventura da palavra impressa, às vezes livre, às vezes reduzida à sombra medieva da senzala nos intervalos históricos das ditaduras. Mas as estrelas dos porões, das masmorras, dos calabouços, as estrelas dos dragões e das dragonas têm sua hora de crepúsculo, passageiras como a estrela de Rilke: “a estrela que contemplo, há milênios é morta”. Só a verdade tem brilho eterno. Melhor do que ninguém, a intemporal e eterna União sabe disso, testemunha da História em letra de forma, arquivo do tempo, escaninho secreto das mais preciosas sementes: a da verdade e sua rima liberdade.