sexta-feira, 3 de julho de 2009

Uma boa idéia

Uma boa idéia

Sitônio Pinto

O primeiro-ministro de Israel, Benjamim Netanyahu, propôs a criação de um estado palestino – desde que desmilitarizado. Mais ou menos como os palestinos que estavam nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, no Líbano, em 16 e 18 de setembro, quando foram atacados pelas Forças Cristãs Libanesas, milícia insuflada pelo governo de Israel. Baixas: 3.500 civis, entre homens, mulheres e crianças, todos desarmados.
Sabra e Shatila não foram os primeiros acontecimentos desse tipo na cruenta história da invasão israelita à terra de Canaã, ocorrida nos tempos bíblicos. Em Jericó, cidade mais antiga do mundo, seus primitivos habitantes foram todos passados a fio de espada pelo invasor judeu:

“Fique só com vida a meretriz Raab com todos os que estão em sua casa, porque ocultou os mensageiros que enviamos.” (Josué, 6 – 17, 22, 25, Bíblia Sagrada.)

O primeiro-ministro Benjamim teve uma boa idéia, parece que tomou 51. Cachaça está em moda no Primeiro Mundo, é bebida fina lá fora, e o primero ministro pode ter tomado uma, tem direito. Só não tem direito a desarmar o vizinho enquanto permanece armado até os dentes, chifres e presas. Benjamim não quer resistência armada no lado palestino. Benjamim só se esqueceu de um detalhe: propor a desmilitarização também de Israel, para ficarem todos em igualdade de condições. Ora, Israel é um dos estados mais armados do mundo, tem até bomba atômica, e não é justo que fique armada enquanto seus vizinhos sejam desarmados.
Obama devia fazer a mesma coisa que Benjamim: tomar uma 51 e ter uma boa idéia, propondo a desmilitarização de todos os seus inimigos (aqueles povos que os EUA invadem). Concomitantemente, jogaria no fundo mar todo seu arsenal, a começar das bombas atômicas. Ora, os EUA foram o único país do mundo a jogar bombas atômicas nos outros, feitas com urânio da Paraíba. Obama tem razão quando diz que o Irã e a Coréia do Norte não devem ter bombas atômicas. É uma boa idéia, ele deve ter tomado duas 51’s. Mas, a recíproca tem de ser verdadeira: os EUA devem também se desfazer de suas bombas atômicas e de seus cavalos-de-tróia. Isso é que é uma boa idéia, merece mais uma 51.
Bote outra. Lula, o cara do Brasil, fez algo parecido com o povo brasileiro: baixou o Estatuto do Desarmamento, dificultando a posse e o porte de armas pelo cidadão. Assim, o cidadão, célula do povo, não mais se insurgirá contra golpes militares nem ditaduras, como fez Dilma Houssef. Nem contra invasões estrangeiras, como fez o povo nordestino contra os holandeses. Lula teve uma boa idéia, deixou só os bandidos e os golpistas equipados. Mas o cara se esqueceu de desarmar primeiro os marginais, para depois desarmar os cidadãos e os soldados, inclusive os soldados estrangeiros, como os holandeses e os norte-americanos, tradicionalmente invasores. Aí vale uma garrafa de 51, para o cara tomar com Obama.

Um poeta, uma época (III)

Um poeta, uma época (III)

Sitônio Pinto

Os párias vestiam-se à sua maneira, com os paletós pelo avesso, e tinham manifestações peculiares e espetaculares, como as “neuras”, quando entravam em “agitação psico-motora”, sapateando, balançando os braços e gritando em altos berros, isso nos pontos freqüentados pela melhor sociedade — como no footing da Praça dos Três Poderes. Às vezes, comiam a grama da praça, de quatro pés, à Nabucodonozor. Eram essas performances meios de chocar a burguesia da época. Um dia, os párias deram uma neura no Clube do Silêncio. Em baixo era a sede de uma loja maçônica, o térreo e o primeiro andar separados por um soalho de madeira. O som da neura incomodou os irmãos maçons, que solicitaram a intervenção da Rádio Patrulha, instalada na esquina ao lado, para acabar com a reunião da pariagem no zuadento Clube do Silêncio.
O grupo de pintores e escultores contava com Hermano José, Raul Córdula, Marlene Almeida, Archidy Picado, Breno Matos, os irmãos Ademar e Marisa Barros, e outros ocultos no claro-escuro da memória. Vanildo não pintava, mas era interessado em estética e história da arte. Dominava bem o francês, e, assim, lia para quem quisesse ouvir os livros de teoria e técnica que lhe chegavam às mãos. À noite, fazíamos a “ronda lírica”: passeios a pé e em grupos pelas ruas sonolentas da cidade. Esses encontros eram animados pela voz seresteira do poeta Zezito Cabral – na opinião do teatrólogo Ednaldo do Egito, ”o maior cantor do mundo”. O vocabulário da pariagem era, em sua maior parte, da verve do pintor Ivan Freitas. Mas o agrupamento deve muito à gravidade de Vanildo, principalmente com sua editoria n’ A União nas Letras e nas Artes.
Na sua tentativa de definir aquele orfeão de poetas — mesmo fértil de contradições, pois os havia de várias correntes filosóficas — Vanildo Brito transborda o núcleo dos poetas e alcança outros grupos de artistas. Vejamos essas palavras da sua Introdução à antologia Geração 59:

Nunca se sentiu tanta sede de Absoluto como no atual momento histórico. E a Arte, como não podia deixar de ser, reflete fielmente este anseio de Transcendente. Nas artes plásticas, os abstracionistas deixaram bem a claro as tendências espiritualistas das modernas orientações estéticas. O primeiro livro de Kandinsky chamava-se Ä Espiritualidade na Arte”; segundo MICHEL SEUPHOR, esta obra concluía proclamando uma nova era, um período de intensa espiritualidade, que encontraria a sua expressão através da Arte. É o mesmo MICHEL SEUPHOR quem afirma ter encontrado em notas até então inéditas de MONDRIAN estas palavras: “A Arte não tem nenhuma significação, a não ser quando expresse o não-material, — pois é isto que possibilita ao homem a superação do seu próprio ser”.
Esta tendência espiritualista na Arte moderna vem de longe. Já em "O Nascimento da Tragédia”, afirmava Nietzsche que os elementos essenciais que provocaram a irrupção da tragédia ática foram

“... a concepção fundamental do monismo universal, a consideração da individuação como causa primeira do mal, a Arte finalmente figurando a alegre esperança de uma libertação do jugo da individuação e o pressentimento de uma unidade reconquistada”.

Não são, porventura, esses os motivos fundamentadores da atual tendência artística? E não estão refletidos, também, na moderna poemática paraibana?

Vanildo Brito não só foi um poeta da G-59, mas também um filósofo, um esteta – embora seu pensamento nem sempre coincidisse com o ponto-de-vista de sua geração, em grande parte inclinada ao marxismo, enquanto o poeta das “Odes ao Cabo Branco” identificava-se com Nietzsche, Spengler e Rilke – mas, acima de todos, Jorge de Lima, cuja obra poética considerava “o quinto Evangelho iluminado”.



À noite, fazíamos a “ronda lírica”: passeios a pé e em grupos pelas ruas sonolentas da cidade.

Um poeta, uma época (II)

Um poeta, uma época (II)

Sitônio Pinto

Mas a Geração 59 alcançava outras áreas das artes, a exemplo do teatro, onde Vanildo também escrevia peças, como A Serpente Alada, A Rebelião dos Abandonados, publicadas em plaquete, Andira (publicada n’A União nas Letras e nas Artes), e a inédita O Conselheiro, texto que o Autor leu para mim no Badionaldo (Praia do Poço), e depois destruiu, por excesso de auto-crítica. Em poesia, Vanildo publicou A construção dos mitos, O espaço e a palavra, Cantigas de amor para Inalda, Memorial poético, A sagração do emblema, Sinal das horas e Selecta carmina. Ainda traduziu fragmentos de Lucrécio, em Da natureza das cousas (De rervm natvra).
O espaço e a palavra é um livro de temática diferenciada, pois trata, poética e epicamente, da exploração do espaço sideral, do nascimento da cibernética, da palavra humana e da palavra organizada pela inteligência artificial. O livro já estava pronto nos fins dos anos sessentas, dez anos após G-59, muitos anos antes da democratização do computador. Quando concluiu o livro, o poeta brindou-me com a leitura íntima do texto no Badionaldo, como fizera com O Conselheiro.
Ao tempo da Geração 59 foi a premiação da peça A Erva, de Altimar Pimentel, e o primeiro lugar alcançado pelo Teatro do Estudante do Paraíba (TEP), no Festival Nacional de Teatro de Estudantes, realizado em Santos, SP, naquele ano, com a peça João Gabriel Borkman, de Henrik Ibsen. Era a primeira tradução da peça em português, feita por Walter Oliveira e Raimundo Nonato Batista. O prêmio de melhor ator ficou para Valdez Silva, e o de melhor atriz para Risoleta Córdula.
No dizer de Glauber Rocha o Cinema Novo Brasileiro nasceu em Paraíba, com os documentários Aruanda (Linduarte Noronha, Vladimir Carvalho, João Ramiro, João Córdula), Cajueiro Nordestino (Linduarte Noronha), Romeiros da Guia (Linduarte Noronha), o que teria continuidade, mais tarde, com A Cabra (Rucker Vieira), Padre Zé Estende a Mão (Jurandy Moura), e o longa Fogo (Linduarte Noronha). Esse grupo de cineastas compunha a ambiência da Geração 59. Havia elementos que faziam parte dos dois grupos (de poetas e cineastas), como João Ramiro. Merece especial registro a presença do amazonense Pedro Santos, o roteirista musical do Cinema Novo Brasileiro que surgia no Paraíba dos anos cinqüentas.
O pintor Ivan Freitas deu uma denominação mais abrangente àqueles artistas que tentavam renovar as artes no Paraíba e no Brasil (como foi o caso do Cinema Novo): os Párias. Ivan era autor de grande parte do vocabulário da Geração 59. Assim, poetas, teatrólogos, cineastas, pintores, escultores, músicos, éramos todos párias. “Somos uns párias” — disse, um dia, Ivan Freitas a Vanildo. E ficou batizada a grande geração de artistas que excedia ao grupo de poetas. Os párias tinham ritual de batismo, lá nas fontes da água mineral Santa Rita. E tinham sede física: a princípio reuniam-se numa pensão da Rua 13 de Maio, onde moravam alguns deles; depois alugaram um primeiro andar da rua Duque de Caxias, onde instalaram o surrealista Clube do Silêncio. (Continua.)

Um poeta, uma época

UM POETA, UMA ÉPOCA (I)

Sitônio Pinto

Vanildo Ribeiro de Lyra Brito desempenhou um papel de grande importância na renovação das artes na Paraíba, no fim dos anos cinqüentas do segundo milênio. Naqueles tempos, um grupo de jovens procurava caminhos para uma nova estética. Essa tendência manifestava-se não só na poesia, onde Vanildo Brito era destaque, mas no teatro, no cinema, nas artes plásticas.
Um grupo de 14 poetas (catorze, como os versos de um soneto) deu referência temporal a essa tendência, pois publicou antologia com a data/título: Geração 59. A data não está muito exata, que o livro já estava pronto desde 1958; mas, por dificuldades técnicas, só pôde sair do prelo em março de 1959, modificando-se, assim, o seu título.
O grupo era constituído por Celso Almir Japiassu Lins Falcão, Clemente Rosas Ribeiro, Geraldo Medeiros, João Ramiro Farias de Mello, Jomar Morais de Souto, José Bezerra Cavalcanti, José (Zezito) Cabral, Jurandy Moura, Liana de Barros Mesquita, Marcos Aprígio de Sá, Luiz Correa, Ronaldo José da Cunha Lima, Tarcísio Meira César, Vanildo Brito.
Eu cheguei depois, em 1961, aos dezesseis anos. Não sou da Geração 59, como pensam alguns, mas seu filho, ou continuador da G-59, como também era chamada. Outros também chegaram empós, como a poetisa Rejane Sobreira e o poeta Marcos dos Anjos, que logo se afastou da G-59 para formar o Grupo Sanhauá — com suas edições mimeografadas e capas em xilogravura sobre papel carne-seca, diagramadas por Pontes da Silva. Não fui da antologia, pois na época tinha apenas 14 anos, mas fiz parte do fenômeno da Geração 59 — que abrangia um tempo maior e uma área de atividades além da poesia, como pretendo mostrar. Falo assim porque falar de Vanildo Brito é falar da Geração 59, e vice-versa.
Não era bem um movimento; era mais uma tendência, um sentimento de renovação. O movimento de 1922 já havia chegado à Paraíba, como testemunham alguns textos de Olivina Carneiro da Cunha, o notável poema Hospitalidade, da autoria de Aderbal Piragibe, e o manifesto modernista assinado no Sertão, no município de Princesa (atual Princesa Isabel), por membros do Grêmio Literário Pereira Lima, sob inspiração do intelectual Joaquim Inojosa.
O grupo de poetas da Geração 59 teve um grande estímulo quando Vanildo Brito assumiu a editoria do suplemento literário A União nas Letras e nas Artes, continuador do antigo Correio das Artes (o suplemento literário mais antigo em circulação no Brasil). O Correio das Artes foi fundado em 1949 por Orris Soares (o mesmo fundador do jornal O Norte), mas seu nome sofreu mudança na editoria de Vanildo Brito, por conta do surgimento, na época, do jornal Correio da Paraíba. Posteriormente, continuou sendo publicado sob o título de U-2, na editoria de Jurandy Moura, voltando ao seu título antigo na editoria de Sérgio de Castro Pinto, quando foi alçado à condição de suplemento nacional e ganhou o prêmio de melhor suplemento literário brasileiro. (Continua).

Seremos todos campeões

Seremos todos campeões

Sitônio Pinto

Oito a um. Já vi um escore desses numa partida de futebol entre as seleções do Brasil e do Peru, se não me engano. A seleção chilena estava desclassificada, já tinha ido embora. Com a vitória acachapante do Brasil, o Peru caiu fora e o Chile foi classificado matematicamente, por saldo de golos. O técnico do Chile ficara para ver o jogo, e saiu às pressas do estádio para chamar seu time de volta.
Agora, o Supremo Tribunal Federal derribou, pelo mesmo escore, a obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da profissão. Os órgãos de classe dos jornalistas chiaram, os patronais aprovaram. Há muito tempo já me manifestei, em artigos, sobre o caso. Fui dirigente do Sindicato dos Jornalistas e tive que refletir sobre esse assunto para defender a categoria. Entendo a situação de maneira diferente dos órgãos dos trabalhadores da imprensa, dos patrões, dos advogados e do STF.
O meu ponto de vista não é original, pois já foi adotado em algumas unidades dos Estados Unidos da América, e deu certo. Naquelas unidades administrativas dos EEUU, estabeleceram a obrigatoriedade de pós-graduação para o exercício da profissão de jornalista e extinguiram a graduação. Essa medida valorizou o novo profissional, que passou a ser pós-graduado. Valorizou, ainda, porque ele passou a ser diplomado também noutra profissão. Essas duas situações lhe dão prestígio diante do patronato, o que repercute no salário. E as redações ganharam com isso, pois passaram a ter especialistas nos seus quadros:um jornalista-engenheiro para cobrir o acidente da ponte que caiu, um jornalista-médico para escrever sobre a epidemia, um jornalista-economista para explicar a crise econômica; um jornalista-jurista para analisar a decisão do tribunal etc.
O jornal é uma enciclopédia que tem de ser escrita todo dia, em doze horas. Ele reporta todos os assuntos. Mas as redações não têm especialistas sobre tantos temas, pois o curso de jornalismo não forma especialistas noutras áreas, muito menos faz enciclopedistas. Resultado: quando o repórter vai cobrir a ponte que caiu, o que se lê é um monte de impropriedades. Assim com o noticiário sobre a epidemia, sobre a crise econômica do capitalismo, sobre a decisão do júri que soltou o réu. O curso de jornalismo só ensina a fazer jornal, não é um super-curso que forma profissionais aptos a escrever sobre qualquer assunto. Daí as heresias que se lê nas páginas dos jornais, desde que se entenda do assunto em pauta. E o resultado não podia ser outro, pois o foca nada entende das redes de transmissão de energia elétrica para falar sobre a os planos de expansão da Eletrobrás.
Agora, com a decisão do STF, o jornal pode contratar um engenheiro-eletricista para a redação. E exigir que ele tenha uma pós-graduação em jornalismo, pelo menos uma especialização de um ano. Eis o que deve se transformado em lei, por decisão do Congresso (esse dos atos Secretos). Ganharão os jornalistas, que passarão a ser profissionais mais qualificados; ganharão os jornais, que terão em suas redações especialistas em áreas diversas; ganharão os leitores, que vão dispor de informações mais precisas. Ganharão o Chile, o Brasil e o Peru, num jogo onde ninguém sairá perdendo, onde todos seremos campeões.

Tio Sam pede perdão

Tio Sam pede perdão

Sitônio Pinto

O Senado dos EE.UU pediu desculpas aos negros pela escravidão a que foram submetidos na América, durante séculos de trabalho forçado e gratuito, sem férias, sem aposentadoria, debaixo de chicote, coice de cavalo e dente de cachorro. A carteira profissional era o ferro em brasa do Laudy – a forma africanizada de Lord, correspondente ao Sinhô, ou Yôyô da escravatura luso-tropical; é bom lembrar que Lord tanto pode ser a figura aristocrática, quanto Deus: “Sometimes I'm up and sometimes I'm down, / oh, ya, Lord...” (às vezes eu estou pra cima,/ às vezes eu estou pra baixo, oh, sim, Senhor...). E assim o negro canta sua oscilação de humor entre euforia e depressão no clima bi-polar da senzala, no espiritual Nobody knows the trouble I’ve seen, sublime na voz de Armstrong. Queira ver, de graça, no Youtube. Os senadores norte-americanos precisam ler “O jazz e sua influência na cultura americana” (Blues people: negro music in White) America, de Leroi Jones. É dele a definição “o escravo é o trabalhador sem direito” (pode ser encontrado na Estante Virtual e no Sebo Cultural do livreiro Eriberto
Foi uma decisão unânime a dos congressistas. Eles responderam de pé. Resta perguntar se vai ficar só nisso, ou vão dar uma compensação aos afro-descendentes pela exploração de seus pais e pela discriminação que vêm sofrendo até hoje. Será que os EUA têm uma reserva de vagas nas universidades para os negros pobres, que não podem pagar o caríssimo ensino superior particular, como é tudo na terra de Marlboro, nem um ensino primário e médio que os conduza à Universidade? Será que os negros têm uma reserva de mercado para nos postos de trabalho? E o atendimento médico aos libertos da senzala, como é?
Foi preciso ser eleito um presidente mestiço para que os senadores norte-americanos tomassem essa decisão. Isso deixa parecer que a homenagem foi mais ao presidente Obama de que aos negros propriamente ditos. É bom lembrar que os ancestrais de Obama nunca foram escravos, e a moção dos senadores referiu-se não restritamente aos negros, mas condenou a escravidão como um dos maiores crimes da humanidade.
Só mais recentemente a escravidão veio a ser considerada sob o ponto de vista racial; antes, os povos escravizavam seus irmãos de raça: gregos escravizavam gregos, romanos a romanos, judeus a judeus, seja na forma de servidão ou de escravidão. A escravidão era uma realidade de classe, de modo de produção. Só com o “achamento” da América tornou-se, também, uma fenômeno histórico-econômico que se estribava, ideologicamente, na questão racial, para a importação de mão-de-obra africana. E a discriminação racial passou a ser uma necessidade ética e um artifício ideológico moral, como única maneira de justificar a exploração escrava.
Tio Sam ainda tem que pedir perdão a muita gente. Deve começar pelos índios, que foram exterminados; depois, aos mexicanos, a quem roubaram todo o sul dos EUA; às populações civis de Nagasaki e Hiroshima, onde despejaram duas bombas atômicas; à população de Colônia, que torrou viva com bombas de fósforo. Nessas cidades, não havia nem um soldado, todos estavam no front. E que não se esqueça do Viet-Nam, do Camboja (onde USA jogou mais bombas do que na Europa, durante a SGM). Há muito perdão a pedir a muita gente, pelo grande pirata da humanidade.

Riso

Riso

Sitônio Pinto

Por muitos e bons anos Riso foi agente de arte em Paris, expondo e promovendo artistas plásticos brasileiros, locais e do mundo inteiro que a procuravam para entrar no mundo das artes, da fama e da glória. Foi uma espécie de embaixadora brasileira em Paris, dizia seu amigo Palmary Lucena, ele também uma espécie de embaixador brasileiro junto a tantos organismos internacionais em que trabalhou, agora publicando sua experiência de globe-trotter em insuperáveis artigos que promete transformar em livro.
Riso era filha do emérito professor Raul Córdula e de Dona Elizabete Trevas Córdula, ele meu mestre de Latim no curso Clássico do Lyceu, lá no começo dos anos sessentas. Naquele tempo, tudo que se fazia no setor de educação, na Paraíba, tinha de passar sob o crivo do professor Raul Córdula, mestre não só em Latim, mas ainda em Pedagogia. Era um homem literalmente esperto e ativo: viveu acordado durante muitos anos, absolutamente sem dormir. Uma noite, alta noite, em meio de uma farra, passei por sua casa e vi a luz acesa. Não me lembrei do detalhe da insônia do professor; pulei o muro e chamei por Raul (o Córdula Filho), meu colega do Liceu e do grupo dos “Párias” – ambiente que envolvia a Geração 59.
- Quem é?
- É Dom Quixote, Pária!
Ao ouvir a expressão “Pária”, o mestre entendeu que o chamado não era para ele, e, um tanto perplexo, foi acordar o filho:
- Raulzinho, tem uma cara aí chamando por você, dizendo que é Dom Quixote.
Riso era a irmã mais velha do meu irmão Raul, o pintor de “A vendedora de flores” e da série “Borborema”, premiado internacionalmente. A irmã mais velha de Leda, de quem falei há poucos dias, nessa coluna, como a ganhadora do prêmio de melhor atriz no Festival Nacional de Teatros de Estudantes, realizado em Santos, SP, nos idos de 1959. Era a irmã mais velha de Betinha Kawamura; a irmã mais velha de Roberto e de tantos nós, principalmente daqueles que foram buscar seu apoio para entrar no mundo das artes de Paris – onde tinha um círculo mágico de amizades, em que se destacava o escritor Paulo Coelho.
Durante muitos anos, Riso lutou bravamente contra o lobo do câncer. Sua luta desigual contra o inimigo feroz faz lembrar a passagem de Paulo Coelho em “O Demônio e a Srta. Prim”:
- Agora mostre que é um homem – gritou. – Desça da árvore, segure firme o archote, e mantenha o fogo na direção do lobo!
[...] O lobo recuara, estava assustado com o fogo: continuava a rosnar e saltar, mas não chegava perto.
Riso era uma espécie de irmã mais velha de sua geração. De Palmary Lucena a Glória Gadelha, dos artistas brasileiros que precisavam de um referencial na França. E deixou-nos uma irmã belíssima – sua filha Cristina Córdula -, a grande manequim brasileira internacional, capa das revistas do mundo, que abriu caminho para as estrelas de hoje e que ainda brilha sob o céu de Paris.

Propaganda enganosa

Propaganda enganosa

Sitônio Pinto

Recentemente vi um filme promocional de turismo da Paraíba, relativamente bem feito, mas portador de uma grande mentira sobre o Estado. A peça estava sendo exibida num monitor de TV da recepção de um hotel da orla marítima. Disseram-me que sua veiculação se destinava mais ao mercado externo, isso é, aos pólos emissores de turismo, principalmente para exibição nas feiras, congressos, agências de viagens etc. Não sei quem criou e produziu o filme, pois não esperei pelo final para ver os créditos (nem quero saber). A fotografia era razoável, o feijão-com-arroz das peças publicitárias, a paisagem facilmente identificável para quem conhece a terra dos irmãos Arruda Câmara, de Zé Lins, de Augusto dos Anjos, embora o filme não referisse esses nomes – nem outros do mesmo prestígio, como Chateaubriand, Ariano Suassuna, Celso Furtado, José Siqueira, Pedro Américo ou Ivan Freitas. Penso que não seria pedir demais para um comercia,l mesmo destinado ao grande público. Pois deve interessar ao turista que para aqui vem, conhecer a Paraíba do fundador da Ordem dos Músicos do Brasil e da Orquestra Sinfônica Brasileira, que foi o maestro José Siqueira; a Paraíba do fundador dos Diários Associados e da televisão brasileira, que foi Assis Chateaubriand; a Paraíba do único presidente dos três poderes da República, que foi Epitácio da Silva Pessoa; a Paraíba do romancista José Lins do Rego, do poeta Augusto dos Anjos, do teatrólogo Ariano Suassuna, do economista Celso Furtado; dos pintores Pedro Américo, Ivan Freitas, Miguel dos Santos, Flávio Tavares, João Câmara e Raul Córdula; a Paraíba dos cineastas Vladimir Carvalho, Linduarte Noronha, Rucker Vieira e João Ramiro, que fundaram o Cinema Novo Brasileiro, conforme disse Glauber Rocha, e dos cineastas Walter e Lula Carvalho, continuadores de Vladimir; a Paraíba dos compositores e instrumentistas Sivuca e Radegundes Feitosa, considerados, respectivamente, o maior acordeão e o maior trombone do mundo; a Paraíba de Zé, Luiz e Elba Ramalho; a Paraíba de Vital Farias, de Jackson do Pandeiro, de Canhoto e de Ratinho (aquele que compôs o chorinho “Saxofone, por que choras?”). A Paraíba dos grandes nomes que Pernambuco, às vezes, quer encampar, como Ariano, Chateaubriand, Celso Furtado, Raul Córdula e João Câmara, e dar de troco, desterrado e banido, um bandido do Vale do Pajeú que fez derramar tantas lágrimas e tanto sangue no Nordeste Brasileiro. Ou Pernambuco quer deportar ou a Paraíba quer importar o facínora execrável, sem nenhuma necessidade, e dele fazer propaganda enganosa (art. 67 do Código de Defesa do Consumidor), mostrando ao turista, no seu filme promocional, a figura abominável do facínora e seus asseclas, encartucheirados e armados, dançando xaxado – que não é dança de cangaceiros, mas de trabalhadores, de agricultores, pois a palavra, onomatopéica, é derivada do som produzido pela enxada na faina de capinar, e da própria palavra “enxada”, ouça-se “xa-xa-do” – como se paraibanos fossem. Mesmo os passos da dança repetem o caminhar de quem capina, de quem limpa uma roça, ou abre suas covas, “puxando cobra pros pés”. O xaxado não é dança de cangaceiros, mas de trabalhadores pacíficos, assim como os cangaceiros não são da Paraíba, o quarto estado brasileiro com menor índice de homicídios. Mas é o que se vê, não só no cinema publicitário, mas nos restaurantes, nas escolas, nas lojas, a imagem do cangaço como símbolo da Paraíba, – berço de grandes nomes disputados por outros estados, que fazem a glória de sua terra e do Brasil.

O Grande Desastre Aéreo

O grande desastre aéreo
Sitônio Pinto

Há uma palavra e um tema proibidos na propaganda das empresas de aviação: « segurança ». Essa palavra e esse tema são tabus, pois despertam reações negativas nos usuários de viagens aéreas. Até os anos cinqüentas (50’s) os anúncios das empresas aéreas ainda abordavem esse tema, mas se descobriu que seu tratamento exacerbava o temor dos viajantes potenciais - ou impotentes. E se baniu a palavra dos textos. O approach passou a ser dirigido para conforto, pontualidade, glamour, serviço de bordo, preço etc. Qualquer assunto, menos segurança.
Há uma convenção internacional que proibe a divulgação das gravações dos diálogos proferidos nas cabines dos aviões sinistrados, com a mesma preocupação que censurou a palavra « segurança » na propaganda das empresas aéreas : não provocar pânico no mercado consumidor. Recordem-se os casos ainda recentes de dois jatos sinistrados no Brasil : o da Gol (Boeing, em 02-10-2006) e o da TAM (Airbus, em 18-07-2007). O primeiro colidiu com um avião Legacy (Embraer) nos céus de Mato Grosso; o segundo percorreu toda a pista na aterrissagem, chocando-se com um depósito da Gol para incendiar-se em seguida, no aeroporto de Cumbica, São Paulo. As caixas-pretas registraram os diálogos desesperados dos tripulantes nas cabines, do qual o público só tomou conhecimento de algumas partes. Mesmo assim, as autoridades brasileiras do setor aéreo foram criticadas por organismos internacionais, pela divulagação daquelas derradeiras conversas, inda que parciais.
Há um desinteresse sintomático, por parte da imprensa francesa, na cobertura do caso do vôo 447 da rota Rio-Paris, desabado este mês no litoral brasileiro. Há duas grandes empresas francesas envolvidas na tragédia : a Airbus, construtora do avião sinistrado, e a Air France, operadora do vôo. Vejam só o « lead » com que L’Express de ontem abriu a notícia : Selon la presse brésilienne, l'enquête sur le crash du vol AF447 avance. L'examen des 16 premiers corps [...]. « Segundo a imprensa brasileira », diz o jornal. Assim disse a imprensa francesa outras vezes em que tratou o assunto. Outras vezes nem trata, como o Le Monde de ontem e de outras edições. E assim calou a imprensa francesa noutros dias, com os corpos das vítimas ainda a boiar no mar.
Por que acontecem desastres aéreos ? Em grande parte, por conta da ganância de lucros das empresas do setor. Quanto mais rápido voar um avião, mais passageiros o mesmo aparelho e a mesma tripulação levam, otimizando os custos. Essa velocidade final arrasta a velocidade mínima para cima, fazendo com que um jato de pasageiros tenha que aterrizar a 250 kmh. Com a tragédia do vôo Rio-Paris, a Airbus recomendou aos pilotos de seus aparelhos que não vôem a menos de 500 kmh, para não desestabilizar o avião. Por que as pistas de pouso são curtas ? Para não onerar os custos dos aeroportos. Por que os vôs transoceânicos não são feitos em aviões anfíbios ? Porque os hidroaviões são mais caros de fazer e de operar. Por que os combustíveis são inflamáveis, quando o diesel puro não o é ? Porque os motores a óleo são mais lentos. Por que tanta pressa? Porque essa urgência não é dos passageiros, mas das companhias aéreas em ganhar dinheiro. Na tragédia de Cumbica, cobraram das vítimas as passagens vendidas a crédito para o vôo da morte. Até a rota do vôo AF 447 é um atalho que desconsidera a perigosa zona de turbulência que provocou a tragédia.

O cara do Brasil

O cara do Brasil


Sitônio Pinto


Circulando pelas ruas automóveis com um estranho adesivo nos pára-brisas: O cara do Brasil. Apressadamente, julguei que fosse um erro gramatical; mas, a uma segunda leitura, lembrei-me da frase que o presidente Obama, dos EUA, pronunciou a respeito do presidente Lula, num encontro a três com o primeiro-ministro da Austrália: “este é o cara”. Pode ser que o adesivo seja mesmo uma referência a Lula, numa repercussão do comentário bem-humorado do presidente Obama.
O fato é que Lula está com um grande índice de popularidade, dentro e fora do Brasil, até na terra de Marlboro. Quem diria, ele que era mal visto pela CIA, pelo FBI e pela Ku-Klux-Klan, que era tido como um comunista, como uma ameaça à democracia e à estabilidade política do continente. O que dirá o ex-delegado Tuma, agora senador, que prendeu Lula como um subversivo, um agitador, um mau brasileiro, durante a ditadura militar que torturou o Brasil por mais de duas décadas? O que dirão aqueles que o reprimiram? Lembro-me de Lula comentando, na sua primeira campanha, na propaganda eleitoral, diante das câmaras de televisão: “esta cacunda aqui já levou muita cacetada da polícia de Maluf”.
Mais de 80 % de aprovação, dizem as pesquisas. Popularidade assim nunca se viu no Brasil. Nem a de Juscelino, quando inaugurou Brasília; nem a de Getúlio, quando lançou a versão brasileira da Carta Del Lavoro – a legislação trabalhista de Mussolini. Nem a popularidade de Jânio Quadros, o homem da vassoura, quando proibiu lança-perfume, desfile de maiô e briga de galos; nem de João Goulart, quando decretou a nacionalização das companhias de petróleo no Brasil, o que apressou sua deposição pouco tempo depois.
Os índices de aprovação dos quatro generais da ditadura militar não chegavam à metade do nordestino de Caruaru: Castelo Branco ficou em torno de 6,6 %; Costa e Silva foi um pouco mais além: 7,2 %; Médici desceu para 4,9 %; Geisel conseguiu 8,1; e Figueiredo, que promoveu a reabertura, alcançou 8,7 %. Esses cinco cavaleiros apocalípticos, somados, só alcançaram 35,5 % de aprovação popular, segundo os arquivos secretos do SNI.
Lula está dando de capote nos cinco generais e suas vinte estrelas, mesmo contrariando a vontade do povo, que pede sua reeleição. Debalde o clamor popular, pois Lula já afirmou que não vai disputar um terceiro mandato. Entendo que essa atitude do presidente é anti-democrática, pois contraria os anseios do povo brasileiro tão bem demonstrados nas pesquisas de opinião, assim como na “boutade” bem-humorada do presidente Obama que pode ter dado vez ao adesivo circulante nas ruas.
Terá sido Obama que mandou fazer O cara do Brasil? Uma coisa é certa: não se trata de campanha eleitoral, pois Lula já disse que não aceita ser candidato, que tem sucessora na pessoa da camarada Dilma Houssef, a ex-comandante das organizações guerrilheiras que resistiram à ditadura militar. Sem dúvida, Dilma é uma grande candidata, com notável formação e pós-graduação nos bancos acadêmicos e nos porões da tortura da ditadura (desculpem a rima). Se Lula é o cara, ela é a cara do Brasil.

Mestre dos mestres

Mestre dos mestres

Sitônio Pinto

Ontem, 15 de junho, a Universidade Federal da Paraíba deu ao mundo mais um doutor Honoris Causa, como já fizera com Sivuca e Ariano Suassuna. Dessa vez o homenageado foi o jornalista, cronista e escritor Gonzaga Rodrigues. A UFPB tem sido seletiva na concessão de seus diplomas de mérito. Todos os seus agraciados bem que fizeram por merecer os títulos. Quão diferente tem sido a UFPB de outras instituições que premiam medalhões com mais medalhas, comendas e outros títulos, eu ia dizendo “mobiliárquicos”. Dia desses premiaram duas figuras da televisão brasileira que nada têm a ver com a Paraíba, quiçá com o Brasil, e elas cá não vieram receber a pataca; foi bem feito. Mas Gonzaga merece esse e outros louros, assim como a UFPB merece o escritor de “Notas de meu lugar”, e, acredito, nós merecemos os dois.
O escritor Gonzaga Rodrigues deve ser incluído no roteiro turístico da Paraíba, com seus registros documentais do espaço físico e humano desta Capitania Real - não quero dizer “província”. Se a Paraíba foi fundada como capitania real, e não capitania hereditária, por que chamá-la de “província”? Se a terra de Gonzaga Rodrigues já deu sete nomes para compor a constelação da Academia Brasileira de Letras, tem de ser mesmo uma capitania real. Para quem não se lembra, lá vão os sete nomes, número que poderia crescer para oito com o nome do autor de “Um sitio que anda comigo”: Pereira da Silva, José Lins do Rego, José Américo, Assis Chateaubriand, Lyra Tavares, Celso Furtado, Ariano Suassuna. Se for pela disciplina tão à vontade do texto, pela economia e resultado da frase, pelo brilho simples e transparente da palavra luminosa de cristal, a prosa de Gonzaga Rodrigues nada fica a dever ao verbo de nenhum desses conterrâneos que ganharam, merecidamente, prestígio nacional.
Quem quiser conhecer a Paraíba pode começar com os textos de Gonzaga Rodrigues. São um prelúdio ao viajante que deseje fruir a paisagem física e humana da terra também de Pedro Américo, pintor como Gonzaga, um de pincel, o ou outro de pena. A Paraíba, como resultado colonial da invasão Portuguesa, com seu espaço e sua história – principalmente sua história recente, afetiva, lírica – está documentada carinhosamente na obra de Gonzaga, que ainda não foi dada à informação e deleite do público brasileiro por miopia dos editores dos grandes centros. Esses só têm olhos para os que deles se aproximam, aos quais o poeta Vanildo Brito chamava de “paus-de-arara” literários. Já não se fazem editores como antigamente, a exemplo de Augusto Frederico Shmidt, que pegou o vapor no Rio de Janeiro para vir buscar Graciliano Ramos em Quebrangulo.
Se algum editor do eixo Rio - São Paulo estiver lendo esta crônica em “A União” saiba, desde logo, que a Paraíba Real tem um escritor em caixa-alta ainda não lido pelo público brasileiro – o autor de “Filipéia e outras saudades”, de “Retrato de memória”, o Gonzaga das esquinas e dos cafés, ruas e casarios, praças e adjuntos. Só lendo para crer: seu texto não deve aos melhores da crônica de língua portuguesa, daqui e de ultra-mar. Um texto que anda comigo pelas redações da vida, pelos acentos graves e tão agudos da vida, e pelos tremas que ainda há – como a “saüdade” de Camões – que, reformado, vai ganhar um verso heróico de nove sílabas. Mas as gramáticas passam, Camões e Gonzaga ficam.

Garrafas ao mar

Garrafas ao mar

Sitônio Pinto

Nos tempos dos navios de pau e pano (e dos homens de fé e ferro), quando ainda não havia rádio, nem Morse, nem Internet, nem celular, a comunicação de quem se fazia ao mar com sua base em terra era bem mais difícil de que nos dias (e nas noites) de hoje. Veja-se, por exemplo, quando Pedro Álvares Gouveia Cabral “achou” o Brasil: ele despachou um navio para Lisboa a fim de dar a notícia a El Rei, levando a notável Carta de Caminha. Para os sobreviventes de naufrágios, a comunicação era ainda difícil. É clássica a romântica figura da garrafa ao mar, em que o solitário de alguma ilha deserta escreve uma mensagem, bota numa garrafa salvada ao sinistro e deita-lhe ao mar, na esperança que as correntes levem-na às mãos de alguma praia em “terras de Espanha ou areias de Portugal”.
Uma crônica é mais ou menos assim; às vezes chega a destinos. Nesse meu retorno ao colunismo, as mensagens mal-traçadas que rascunho todos os dias têm encontrado albergue e eco nas ripostas de leitores ilustres – como o que lê, agora, esta coluna. Recebi, de volta, garrafas que me chegaram navegantes polos mares da Net, com seu estímulo e esperanças de salvamento.
E assim foi com a mensagem da Bela Marília Gil Messias de Melo (bela duas vezes, porque também é bacharela e, portanto, Bela no jargão jurídico), cronista que está para aparecer; escreveu-me ainda a Bela Cleide Maria Ramalho de Farias, reclamando porque este escriba deixara a crônica, mas congratulando-se pelo meu retorno; deu-me notícias e apoio, também, a Bela Myriam Yasbeck Asfora, professora de Direito Agrário da Universidade Rural de Pernambuco, irmão do inesquecível tribuno; recebi e-mail da médica e escritora Clotilde Santa Cruz Tavares, autora do imperdível blog Umas & Outras. Após quatro anos na Paraíba, Clotilde está voltando para Natal. Quem ou o que terá levado essa bela mulher para a República Comunista do Rio Grande do Norte – a primeira da América e única do Brasil, nos idos de 1935?
A Doutora Maria da Paz Gomes Silvino, psiquiatra e escritora, também deu o ar de sua graça ao carente cronista, com sua sabedoria solidária; outra Doutora que aplaude (e eu esperava isso) a reabertura desta coluna foi a escritora e compositora Maria da Glória Pordeus Gadelha, para mim Glória Pordeus, a parceira de Sivuca e minha confrade no Conselho Estadual de Cultura; a Pós-Doutora Simone Dantas Carneiro Maldonado, escritora e professora na Paraíba, Ceará e Canadá, envia seu apoio tão humano, mesmo por vias eletrônicas;
O intelectual, professor, poliglota e tradutor José Iremar Alves Bronzeado, que me ensinou economia na UFPB, faz vista grossa e aprova o colunista; o Bel Aldo Lopes Diniz, escritor premiado, agora delegaldo civil no Rio Grande do Norte, emala e telefona seu estímulo; o pintor e escritor Raul Córdula Filho, companheiro de geração, manda seu apoio com todas as cores; o poeta e jornalista Antônio Mariano, animador cultural, editor do Correio das Artes, remete sua força em caixa-alta. Até o rabi Gonzaga Rodrigues deu-me o rubi de sua palavra.
Aguardo você, leitor amigo, nesse endereço ao cimo da página. Sua mensagem navegante é indispensável à continuidade dessa crônica nessa ilha Brasílis, à espera de achamentos.

Brasil versus Itália

Brasil versus Itália

Sitônio Pinto

Se não era domingo, passou a ser. Mas tinha jeito de uma grande tarde de domingo. Depois do jogo, o povo desceu espontaneamente para a Lagoa (a de Detrás, como se chamava, a de Dona Maria, como já se chamou, a dos Irerês, como se chamara, a do Parque Solon de Lucena, como se diz agora). Havia um popular que gritava às pessoas:
- Foi um?
- Não – respondia o passante, para se livrar da abordagem.
- Foi dois?
- Não –. insistia o outro, diante da insistência.
- Foi três?
- Não - prosseguia o diálogo do entremez.
- Foi quatro?
- Foi quatro - ripostava o passageiro, improvisado em escada para o ator do povo.
- Foi quatro! Foi quatro! Foi quatro! - gritava e pulava o brasileiro nato e eufórico.
Anteontem, fez 39 anos daquela memorável partida de futebol em que o Brasil se consagrava tri-campeão do mundo com uma vitória de 4 a 1 sobre a Itália. O certame foi a primeira transmissão direta, pela TV, para o mundo - ou para os países menos pobres do mundo. Aquele histórico 4 X 1 foi cantado em prosa e no poema de Jomar Souto, “Brasil versus Itália”. Vale a pena lembrar e ler.
Antes, a emoção da Copa era transmitida pelo rádio, o aparelho chiando, tossindo e sumindo. Foi assim que ouvi as copas de 58 e 62. Juro que a emoção era maior. Aqueles primeiros minutos do jogo Brasil X União Soviética, na copa de 58, Suécia, foram considerados os maiores minutos da história do futebol, Garrincha driblando toda a defesa, chutando na trave para depois recuperar e cruzar prá Vavá fazer o gol.
Às vezes, os mais jovens me perguntam quem era maior, Garrincha ou Pelé. Eu respondo, sem querer chocá-los:
- Pelé era um jogador como outro qualquer, só que o melhor. Garrincha era diferente de todos: ninguém podia imitá-lo, nem mesmo Pelé. Seu jogo genialmente improvisado tinha um quê de jazz, ou de chorinho. Um era o melhor; o outro, o maior.
Outras vezes, digo assim:
- Pelé era o Machado de Assis do futebol, o mais clássico. Garrincha era o Guimarães Rosa, o mais original.
Mas houve uma coisa, ontem, que eu ainda não tinha visto em campeonatos de seleções. Um jogo disputadíssimo minuto a minuto, palmo a palmo de campo. Mas um jogo limpo, leal, cavalheiro, alegre, elegante. Parecia um amistoso; o amistoso mais cortês e fraternal que já vi, o esporte aproximando as pessoas, como se diz que deve ser. Parecia uma daquelas peladas que Rubem Braga descreve em “As Teixeiras moravam em frente”, nas suas “Duzentas crônicas escolhidas”. O jogo de anteontem, do melhor nível ético e técnico, lembrava uma pelada entre meninos de bairro, com uma ética acima das regras e da arbitragem. Esse “Brasil versus Itália” surpreenderia McLuhan na sua tese da aldeia global. Ela foi superada pelo bairro global em que agora vivemos. Um jogo disputado e confraternizado na África do Sul, aquela em que um dia houve o apartheid.

Arquivo do tempo

Arquivo do tempo

Sitônio Pinto

A nova geração de jornalistas e de leitores não sabe por que os velhos chamam A União de “A Velha”. Mas no frontispício já se lê: ano CXVI, ou, trocando em miúdos, ano cento e dezesseis. O terceiro jornal mais antigo em circulação no Brasil. Para muitos de nós, seu primeiro jornal. Eu mesmo comecei aqui, há 29 anos, quando Nathanael Alves era superintendente e Gonzaga Rodrigues seu diretor-técnico, Agnaldo Almeida na editoria. A gente sai, vai para outros jornais, mas um dia volta para A Velha. Ela é a matriz, a escola; um velho amor, um xodó inesquecível. Depois, o jornal é do Estado; como somos todos comunistas, isso é um fato importante. N’ A União não se tem patrão.
Às vezes A Velha vira jornal do governo, quando algum gestor da coisa pública confunde as coisas e bota A Velha para trabalhar politicamente, sem respeitar seus cabelos brancos derramados nas páginas. Mas dá no que deu, ainda recentemente: processo na justiça eleitoral por uso indevido da coisa pública, e a conseqüente cassação mais a posterior inelegibilidade. Eu acho é pouco.
A União trabalha porque gosta, pois há muitas eras já completou seu tempo de aposentadoria. Já excedeu até o limite imposto pela lei dos sexagenários, que deu aos escravos o direito de parar de trabalhar de graça para os senhores escravagistas ao completarem 60 anos. Mas sem aposentadoria. E com perda da comida, dos trapos que lhe cobriam a nudez para não escandalizar a família do Sinhô, e do teto da senzala. Uma aposentadoria sui generis, onde quem mais ganhava era o patrão, que se via livre de um preto velho de poucas forças.
O Brasil tem uma dívida grande e antiga para com os descendentes da servidão escrava. Contabilizem-se os salários de gerações de cativos que trabalharam de graça, sem direito a férias nem aposentadoria, mais os danos morais irreparáveis, e se verá o montante do débito para com essa multidão de trabalhadores já mortos, que não têm como receber sua indenização. E alguns filhos da burguesia - e de outras mães - ainda reclamam pelo fato de um quantum das vagas nas universidades ser destinado aos descendentes de índios e de africanos. Os primeiros, primeiros senhores dessas terras, que foram exterminados para dar espaço à colonização; os segundos, que perderam sua liberdade, sua pátria, sua cultura e sua dignidade para levantarem, com seus braços, um “novo mundo” que ainda não disse aos povos o que veio fazer.
A velha União é uma testemunha desses tempos, nascida ainda com as portas da senzala entreabertas para a saída de seus últimos ocupantes. Aleitou os filhos brancos da casa-grande e ensinou-lhe as primeiras letras para essa aventura da palavra impressa, às vezes livre, às vezes reduzida à sombra medieva da senzala nos intervalos históricos das ditaduras. Mas as estrelas dos porões, das masmorras, dos calabouços, as estrelas dos dragões e das dragonas têm sua hora de crepúsculo, passageiras como a estrela de Rilke: “a estrela que contemplo, há milênios é morta”. Só a verdade tem brilho eterno. Melhor do que ninguém, a intemporal e eterna União sabe disso, testemunha da História em letra de forma, arquivo do tempo, escaninho secreto das mais preciosas sementes: a da verdade e sua rima liberdade.

Aqueles atos secretos

Aqueles atos secretos

Sitônio Pinto

Durante a recente e indecente ditadura militar, inventaram um dispositivo legal chamado “decreto secreto”, que podia ser baixado a qualquer hora do dia ou da noite pelo gorila de plantão na presidência da República. Isso sem que ninguém visse ou soubesse, ou dele tomasse conhecimento mesmo por ouvir dizer. Um abuso que contraria um princípio universal e fundamental do Direito: o princípio da publicidade. Reza a Constituição Brasileira que a ninguém é dado alegar ignorância da lei. Como é que o cidadão pode obedecer ou transgredir a um decreto secreto, se ele não sabe do que trata?
Esse e outros vícios da ditadura foram herdados pelas instituições brasileiras, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988, efeméride em que muitos vêem o fim da ditadura iniciada em 1964, que tanto infelicitou o povo brasileiro - e até outros povos, pois influenciou e estimulou os gorilas dos países vizinhos a deflagrar seus golpes. Naqueles tempos, a América do Sul era o continente do sistema solar em que havia mais gorilas por metro quadrado.
Um dos vícios herdados pelos nostálgicos da ditadura milicar veio à tona recentemente: os “atos secretos” do Senado, perpetrados a mancheias pela diretoria daquele parlamento burguês. São milhares, dezenas de milhares, cometidos nos últimos anos. Anuncia-se que será realizada uma auditoria pelo Ministério Público, o Tribunal de Contas da União e, a se confirmar, a Fundação Getúlio Vargas. Torçamos para que tudo não se transforme numa enorme pizza. A princípio, quiseram negar o escândalo. Mas a seboseira veio à tona, como os corpos passageiros do Airbus. Agora, é recolher os destroços do sinistro.
Que vergonha, hein? Logo no parlamento sênior. O vício vem de longe, envolvendo outros mandatos, outras diretorias da casa-grande do Brasil. Só admitiram a maracutaia quando não se podia mais esconder o malfeito. Nomearam uma multidão de apaniguados para ganhar salários marajás na moleza, sem trabalhar. Tinha gente morando no exterior ganhando o dinheiro pago com o tributo do povo, o imposto arrancado às tripas dos pobres.
Outra casa legiferante que está a precisar de uma devassa é a Assembléia Legislativa da Paraíba. Há suspeitas de que aquela casa alberga cerca de 50 mil funcionários, grande parte dos quais nomeados por meio de atos mais ou menos secretos, sem publicidade, bastando ao apaniguado apresentar apenas uma conta bancária, para onde vai o salário do marajá. E o vício vem de longe, de velhos e bons tempos, como no Senado. Denunciei isso ao Ministério Público do Trabalho, que repassou a incumbência da investigação para o Ministério Público Estadual, que abriu Ação Civil Pública. Mas é muita areia para o caminhão do MP do Estado. Devassa como essa tem de ser feita pela autoridade federal, com a PF e auditores federais.
Agora, um naipe deputados está aplicando todo o rigor na análise de uma proposta de empréstimo que o Executivo pleiteou junto ao BNDES, proposta já aprovada pelo banco. Os mesmos deputados que aprovaram dúzia e meia de mensagens do governo anterior em apenas um expediente, o que me fez mover uma Ação Popular contra o escandaloso espalhafato, junto com o comunista Simão Almeida, ex-presidente do PCdoB e ex-participante da guerrilha do Araguaia, e o irmão Lúcio Flávio, ex-grão-mestre da maçonaria. Uma frente ampla contra a corrupção.

Apologia do crime

Apologia do crime
Sitônio Pinto

Um dos restaurantes mais badalados da Paraíba, que explora o gênero de cozinha típica, ou regional, utiliza como identidade mercadológica o tema do cangaço. Seus funcionários apresentam-se vestidos de cangaceiros, encartucheirados e de faca à cinta. Logo à entrada, como recepcionistas, os bonecos (gimmicks) de um casal de facínoras que chefiou um bando de celerados e aterrorizou a família e a população rural nordestinas na primeira metade do século. Os gimmicks estão devidamente vestidos à caráter, chapéu de couro, lenço ao pescoço, embornais, alpercatas, roupa de mescla, fuzis (paus-furados) a tiracolo. Somente a cara não aparece, pois deixa um vazio para os otários pousarem, por detrás da macabra figura, o seu rosto aparecendo no lugar da carantanha dos bandidos, como se eles fossem.
Lembro-me de Raymundo Yasbeck Asfora, numa das noites temperadas de Campina Grande, advertindo: “já é tempo de a Paraíba adotar outra marca diferente de seca e cangaço”. Tempos depois, o poeta e orador cearense, adotado paraibano, tombava assassinado pelo cangaço remanescente na Serra da Borborema.
A observação de Asfora nunca me saiu da lembrança. Foi assim que criei e dei à Paraíba seu slogan “Onde o sol nasce primeiro”, encomendado por Gonzaga Rodrigues, quando este era Secretário da Comunicação do primeiro governo Burity. Fizemos um filme, arrematado pelo slogan no final, com a participação do próprio Gonzaga, de Martinho Moreira Franco, de Luiz Augusto Crispim e de Chico Mozart. Os dois útimos já morremos. Gonzaga me pagou e me deu o crédito do filme, numa crônica intitulada O Pau da Paraíba, publicada na sua coluna e perpetuada no seu livro Filipéia e Outras Saudades, pp 16/17. E o slogan perdura até hoje, propagado boca-a-boca e nos meio de comunicação do País.
Mas não é só o restaurante “regional” que difunde a ideologia do cangaço associada à Paraíba. Um dos mais conhecidos colégios desta Capital das Acácias (que bela marca, esta que o poeta Jomar Souto deu a sua cidade!) usou, como figuras decorativas de seu São João, as figuras macabras do casal de cangaceiros.
Não sei o que o tema “cangaço” possa a ter com o São João ou com a Paraíba. Além de estranha à temática joanina, a execrável dupla de bandoleiros não é paraibana. O bandido é pernambucano de origem cearense, pois seu pai saiu arribado do Ceará, onde cometeu um crime, para se homiziar em Vila Bela, Pernambuco; e a bandida é baiana, de onde saiu após chifrar e largar o marido para entrar no cangaço, roubar e matar o povo.
A Paraíba tem outros nomes e outros valores. Só na Academia Brasileira de Letras já colocou sete de nomes. E o índice de homicídios da Paraíba é um dos menores do Brasil: o 24º lugar entre 27 estados, em que pese a propaganda em contrário, como essa do restaurante e do colégio burgueses. Seria bom que o Ministério Público conferisse se o procedimento dessas instituições se enquadram no art. 287 do Código Penal: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.”
A família paraibana, enlutada, agradece.
Airboom

Sitônio Pinto

O primeiro jato comercial do mundo foi o De Havilland Comet, um belíssimo avião lançado ao ar no princípio dos anos cinqüentas. Era um quadrijato de asa baixa, com as turbinas embutidas nas asas, com uma carenagem oval. O Comet era bonito como todo avião que De Havilland produzia. Seu fabricante era o mesmo do famoso Mosquito, notável caça-bombardeio bimotor e biplace, talvez o avião mais perfeito da II GM..
Ele não viveu para ver a vitória da Inglaterra na II GM, mas foi um dos seus heróis. Mais tarde, sua equipe produziria o Comet – que deu início a uma série de tragédias aéreas que tem continuidade até hoje.
O primeiro acidente fatal com o Comet se deu em janeiro de 1954, quando um avião arribado de Roma, operado pela BOAC, se desintegrou sobre o Mediterrâneo. Os Comets foram retirados do ar para pesquisa; como nenhuma irregularidade foi detectada, voltaram a voar e provocar outro acidente fatal logo depois, em circunstâncias similares ao primeiro acidente: outro Comet desintegrou-se no ar.
A De Havilland recolheu os aviões, que foram submetidos a testes de choques hidráulicos, imersos numa piscina, esforço que superava, em muito, as provas dos túneis de vento. O Comet submerso se desintegrou por fadiga do metal, provocada pela diferença de pressão interna e externa, e a fuselagem com heranças dos projetos anteriores, inadequadas a esse stress, como sejam a linha de janelas grandes e quadradas, próximas umas das outras – um convite a ruptura, como o picotado de uma tira de papel higiênico.
Alguns erros dos Comets pioneiros foram corrigidos, e os aviões voltaram a voar – até outro Comet (da Aerolineas Argentinas) se arrebentar após a decolagem de Viracopos (Campinas, SP), em 23 de novembro de 1961. Em todos esses sinistros, não houve sobreviventes. A seqüência de tragédias levou a De Havilland a recolher seus aviões e seu prejuízo.
Mas as falhas mais ou menos secretas dos Comets continuam, como se pode ver na continuidade dos sinistros dos aviões da concorrência que desafiam os céus. Só o Airbus 310 provocou 678 vítimas fatais – as penúltimas em céus e águas do Brasil, no Atlântico, as últimas no Oceano Índico (onde, há poucos meses, sumiu um jato comercial durante uma tempestade). Com o Boeing 737 o número de vítimas fatais sobe para 3.514. E não se fala na retirada (recall) desses aviões para se estudar as causas de tantas tragédias. Os grandes capitais investidos na indústria aérea contam e pesam mais que as vidas apressadas de seus passageiros.
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O colunista agradece as generosas mensagens de apoio enviadas pela escritora Lurdinha Luna, pelo advogado Fernando Correia, pelo atencioso e atento leitor Alberto Mendonça e pelo sociólogo Palmari Lucena, assim como a reprodução dessas crônicartigos por Elpídio Navarro no sítio ElTheatro.

A copa da segurança

A copa da segurança

Sitônio Pinto

Quais são os requisitos para a escolha de um país como sede da Copa do Mundo? Sem dúvida, a segurança deve ser uma das exigências fundamentais. Considerando esse fator, o chefe da delegação brasileira à Copa das Confederações, coronel Nunes, disse que a África do Sul não reúne condições de segurança para sediar a Copa do Mundo de 2010. Lá, hotéis recomendam que não se saia à noite sozinho e que não se leve mulheres. Ora, 25% dos homens da África do Sul admitem que já fizeram pelo menos um estupro. É o que a grande imprensa tem dito nos últimos dias.
No fim do ano passado, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODOC) divulgou a informação que o sul da África e as Américas Central e do Sul apresentam os maiores índices de homicídios no mundo. O Brasil é o quinto país da América do Sul com maior índice de homicídio, e o sexto do mundo. É a conclusão que chegou uma pesquisa da ONG Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana, no estudo desenvolvido com o Instituo Sangari e o Ministério da Justiça, conforme divulgou a Agência do Brasil. O principal motivo desses índices é a desigualdade na distribuição renda, diz a pesquisa – o que não é nenhuma novidade.
Quer dizer: do ponto de vista da segurança, o Brasil é o sexto país do mundo que menos oferece condições de sediar a Copa de 2014. É o que já sabemos há mais tempo, através do generoso noticiário policial dos meios de comunicação do País, principalmente nas grandes cidades, onde o crime atua solto e a repressão se mostra impotente para combater os bandos organizados. Quanto mais se mata bandido, mais aparece – por conta do fator concorde por todos os estudos sobre o problema: a desigualdade na distribuição de renda.
Qual o menor índice de homicídios do mundo? As estatísticas não indicam, mas há quem aponte Cuba. Por coincidência, o primeiro país do mundo a erradicar o analfabetismo – antes da Suíça, Suécia e Israel (neste último, o ensino secundário é obrigatório; depois, se ensina a arte da guerra de conquista contra os países árabes).
E se o Brasil é sexto país com maior índice de homicídios, quais serão as cidades brasileiras que estão à frente no campeonato do crime? Segundo a rede Tecnológica Latino Americana (Ritla), em números absolutos são as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Maceió, Curitiba, Fortaleza, Brasília e Duque de Caxias (RJ). Dessas dez cidades, oito estão escaladas para sediar a Copa de 2014, à exceção de Maceió e Duque de Caxias. No sítio do Ministério da Justiça, as cidades brasileiras mais violentas são Vitória, Recife, Belo Horizonte, Maceió, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Curitiba, Brasília (região do Entorno), Porto Alegre e Belém.
Quanto aos estados com menor índice de homicídios, o relatório da Organização dos Estados Ibero-Americanos aponta o estado de Santa Catarina com o primeiro lugar, com 11,1 homicídios para cada 100 mil habitantes. O mesmo estado tem o melhor índice de matrículas escolares. Já na pesquisa da Folha de São Paulo junto às secretarias de segurança, Roraima é o Estado com o menor índice de homicídios (10,6 por 100 mil) Surpresa é Paraíba, estado que ficou em quarto menor lugar na pesquisa da Folha, com 14,7 mortes por 100 mil habitantes - quase a metade do índice brasileiro, que é de 23, 7. Ôxe, eu pensava que Paraíba era o pior.

A concordata

A concordata

Sitônio Pinto

Desde adolescente ouvia dizer que o capitalismo iria quebrar; que a História se repete; que os EUA seriam uma re-edição do império romano, que os EUA iriam à falência como Roma foi com sua despesa de guerra. Já faz meio século que ouço essa história. Confesso que torcia para isso, mas não acreditava. Houve um tempo em que a União Soviética e a França quiseram re-estabelecer o ouro como padrão internacional para desbancar o dólar e a libra de sua condição de moedas-padrão. O argumento dos restauracionistas era de que os EUA não tinham lastro-ouro para garantir sua moeda e sua inflação, considerada a maior do mundo, só que exportada para os outros países. Mas os gringos diziam que tinham PIB para garantir a emissão de moeda. E a volta ao padrão ouro ficou para outra vez.
O diabo é que a despesa de guerra dos EUA, se onerava o país, por outro lado dava lucro à indústria bélica – que tem um espectro maior que a indústria armamentista, pois o fornecimento de refeições e papel higiênico para as forças armadas também é indústria bélica. Quem quiser, faça a conta: os EUA mantinham um exército de meio milhão de homens no Vietnã; veja-se quanto representavam em dólares o fornecimento de três refeições por dia, mais os lanches, e os chicletes. É o que se chama de munição de boca, quase tão cara quanto munição das armas.
O estado norte-americano está gastando tulhas de dinheiro com as guerras do Iraque e do Afeganistão. Mas os patrocinadores das campanhas eleitorais, que elegem deputados, senadores, prefeitos, governadores e o próprio presidente, estão ganhando cascatas de dólares. E haja guerra, mesmo que custe a morte de civis estrangeiros e de jovens sobrinhos do Tio Sam. Diz-se até que a despesa dessas guerras é financiada com dinheiro emprestado pela China comunista, o país que tem a maior reserva de dólares no mundo. Venha de onde vier o dinheiro, o fato é que o gasto é grande, e tem que ser pago. Um dia, a casa cai - como a cachoeira de Niágara.
Eu pensava que a previsão da falência dos EUA fosse conversa de comunistas. Mas, agora, tudo indica que Tio Patinhas quebrou. Exemplo disso é a concordata pedida pela General Motors. Dizia-se que a segunda maior organização do mundo era a GM, pois o primeiro lugar ficava para a Igreja Católica. A GM pediu concordata depois de receber do governo dos EUA a maior ajuda financeira que uma empresa já recebeu, o que levou o estado norte-americano a ser detentor de 60 % de seu capital. Isso fez da GM uma empresa estatal, ou uma economia mista, fato tão contrário à filosofia liberal e capitalista vigente na terra de Marlboro. E o pior, ou melhor, é que não é só a GM que foi à bancarrota nos EUA: essa semana, a Suprema Corte de lá autorizou a compra da Chrysler pela Fiat. Quem diria que uma das gigantes automobilísticas da América do Norte pudesse, um dia, ser comprada por uma empresa italiana!
A concordata e falência de Tio Sam já vai engolindo mais de trinta bancos, e vai engolir mais. Ah, e se fosse só bancos e fábricas de carros! E a indústria cinematográfica, que, faz anos, os japoneses começaram a comprar? Acabaram-se aqueles filmes em que os soldados yanques estrepavam e torravam os japoneses com suas baionetas e seus lança-chamas. O cinema também pegou fogo

11/06/2009