segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Excerto do livro "Dom Sertão, Dona Seca"


FLORAÇÃO NO SERTÃO:
UM REPENTE VEGETAL

Aventura em cores no Raso da Catarina,
Sertão da Bahia, na busca do verde bravo
- guardado pelos duendes da caatinga
onde vivem os últimos Pankararés.

O sertão é um paraíso[1].
Euclides da Cunha

Verde veloz

Deus fez o mundo em sete dias, mas refaz a caatinga[2] em apenas uma noite. Pela manhã, com a água da chuva ainda escorrendo no chão carrasquento, a caatinga já se transforma no arco-íris vegetal que faz a festa dos homens e dos bichos. É a mudança mais brusca da natureza. O cinza transforma-se no verde salpicado de flores multicores: vermelhas, amarelas, azuis, brancas, violetas... malva brava, lava-pratos, vassoura, vassourinhas, catingueira.

E os pássaros cantam outra vez, retornados da migração sazonal. Aves e borboletas enchem o repente verde com suas pétalas aladas.

O Sertão é fértil porque é seco. O período normal da estiagem — oito a nove meses — permite às plantas e à terra um repouso letárgico (pousio) que restabelece o ambiente para a formidável explosão do inverno. O fato surpreendeu, no começo do século, o carioca Arrojado Lisboa, primeiro titular da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, levando aquele mestre a emitir o parecer que se tornou clássico:

as sementes aí têm um poder germinativo desconhecido no resto do Brasil[3].

Se chovesse mais no Sertão, o solo raso não resistiria à permanência do verde. Eis um problema que tocaia os defensores da irrigação como panacéia para o Semi-Árido Irregular.

É no Raso da Catarina que o repente verde explode com mais energia, como testemunha Euclides da Cunha:

sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical. É uma mutação em apoteose[4].

Nos anos de inverno, a floração da caatinga da Catarina ocorre no período de março até agosto.

A planura e as areias do Raso otimizam a infiltração da chuva, neutralizando a corrida da água, mundo abaixo, para o mar (run off). A vegetação da caatinga e suas folhas secas formam um tapete protetor (mulchagem) sobre a terra, reduzindo ainda mais a enxurrada e também a evaporação. E as raízes têm mais capacidade de captar água (força osmótica) nos areais de que no "carrasco"[5]. Os anos de inverno são também os mais férteis, pois a chuva traz para a terra o nitrogênio da atmosfera — liberado pelos relâmpagos genesíacos do Sertão.

Segundo o ambientalista Guimarães Duque, “o bom aproveitamento da água equivale ao aumento da chuva[6].”A média anual de chuva é de 400 mm: a metade da média do Sertão. Dos 800 mm que chove no Sertão, apenas 20% ficam na terra[7]. O resto se evapora ou corre mundo afora (a evaporação é de 2.000 mm, onde houver água acumulada para tanto).

Silva horrrida, selva tórrida

O Raso da Catarina é um planalto de areia e espinhos perdido no norte baiano, a 400 km do litoral. Suas areias vermelhas — como se fossem embrejadas de sangue — indicam presença de ferro. Os geógrafos do Radambrasil assim resumiram a aspereza do Raso:

“todo o conjunto forma um ambiente onde é muito penoso penetrar. A vegetação armada de espinhos e a presença de espécies urentes, o emaranhado da vegetação arbustiva e das nanofanerófitas, mais as temperaturas elevadas e as areias quentes e soltas, dificultam extremamente os caminhamentos[8].”

Eis a silva horrida de Martius[9], esta selva selvaggia e aspra e forte[10] de Dante, as pseudo-steppes tropicales dos geográfos franceses[11]. “Um complexo vegetacional existente apenas no Nordeste do Brasil”, informa Sérgio Tavares ao Centro Técnico Aeroespacial[12].
As areias parecem embrejadas
de sangue

Para os sertanejos, é o Raso. Assim denominam as planuras de seu deserto. O Raso da Catarina é formado pela Reserva Ecológica, pela Reserva Índigena dos Pankararés e pelas fazendas que se estendem do planalto arenoso até à parte mais baixa, as "terras duras". Uma surpresa do deserto: ao leste da Reserva Ecológica, nas cabeceiras do riacho Logradouro[13] (afluente da margem esquerda do São Francisco), a Mata da Pororoca, sempre verde, com suas árvores de porte: cedro, sucupira e pororoca — que lhe dá o nome.

O Raso não é o lugar mais seco do Nordeste. O pólo seco do Brasil encontra-se no município de Soledade, na Paraíba, com média pluviométrica de 252 mm/ano (o deserto começa em 250 mm). O Raso é a maior extensão de caatinga sem fontes de água. Do começo da Reserva Ecológica, até se encontrar a primeira casa – a de Dedé da Catarina –, se anda um dia de jipe. Mais adiante se chega a São Francisco, povoado de 40 casas.

"O Raso era dos caboclos", diz Miguel Varjão, 81, proprietário da fazenda Barra do Gama. "Catarina foi a primeira proprietária do Raso. O finado João Pedro comprou a terra à Catarina por 500 réis", explica o vaqueiro, rijo e lúcido.

As guerras do Raso

— Alguns populares dizem que o nome Catarina veio de uma louca que se perdeu e que teria morrido na caatinga. Mas Varjão esclarece a dúvida: "Éramos sete vaqueiros; achamos a doida perdida no Raso, com um saco de roupas e outro de livros. Uma professora que perdera o juízo e se embrenhou na caatinga. Trouxe a mulher para minha casa. Depois foi embora, para morrer no Brejo do Burgo". Varjão não sabe mais o nome da louca do Raso, nem o ano do evento: "Foi na década de quarenta. Que guerra? a de Lampião?"

O facínora fazia do Raso o seu coito mais seguro. Alguns de seus "cabras" eram naturais da Catarina, como Azulão[14], cujos familiares ainda moram no lugar.

O Raso é fértil de guerras. Este ano faz cem anos da Guerra de Canudos, a guerra do Brasil contra o Sertão, onde a República perdeu um general e milhares de soldados lutando contra o povo do Conselheiro. Canudos é uma cidade periférica do Raso, sitiado ainda por Monte Santo, Euclides da Cunha, Jeremoabo, Paulo Afonso, Glória, Rodelas e Uauá.

O jornal O Estado de S. Paulo cobriu a tragédia, com uma reportagem seriada do seu correspondente — o engenheiro e gênio Euclides da Cunha. Assim nasceu a epopéia Os Sertões[15].

Reservas do deserto

O Raso da Catarina é o maior e mais seco planalto que se derrama no Sertão da Bahia. Durante o verão, secretas vertentes escondem seus fios d'água nas areias zelosas do deserto ¾ palavra ampliada para "desertão", mas sintetizada em "sertão"[16]. No estio o gado cava, come e bebe as batatas d'água das macambiras e dos umbuzeiros — reservas dessas plantas para os verões.
"Os frutos dos cactos também se comem, mas não tanto
como na Europa"

A Petrobrás cortou o planalto com veredas que permitem atravessá-lo em todas as direções. Trilhas de areia, só acessíveis a veículos com tração nas quatro rodas. Pesquisando petróleo, a Petrobrás descobriu água abundante e de boa qualidade a 200 m. O petróleo faz parte do estoque estratégico para o futuro. A água é necessária só para o homem, pois as plantas e os bichos do Raso têm outra economia hídrica.

É no areal espinhento que o gado escapa na seca. Os bichos grosam os espinhos dos cactos com os chifres e comem a polpa aquosa. "Na seca, o gado escapa no espinho; aqui, nas terras duras, a caatinga não sustenta os bichos num estio prolongado" ¾ afirma Dedé da Catarina.

Um dos exemplos mais eloqüentes de que o Semi-Árido Irregular é viável, mesmo no estio, está no ecossistema do Raso da Catarina. Na Seca, sua caatinga nutre seus animais silvestres e seus gados ¾ que sobrevivem sem fontes de água.

Embornal da seca

"Espinho" é como as pessoas chamam à pastagem nativa do Raso: facheiro, xique-xique, coroa-de-frade, palmatória, rabo-de-raposa. As duas últimas são tostadas pelo fogo para alimentar o gado. Os mandacarus levantam-se altaneiros nas terras duras, os carrascos da Catarina. A pastagem é formada, ainda, de gramíneas e de plantas arbustivas, como o marmeleiro, rico em carboidratos, que no inverno oferece suas folhas ao gado, e, no estio, as cascas; e de leguminosas: guandu, labe-labe, mucunã preta e o quipembe, de folhas e bagens palatáveis e nutritivas.

A caatinga nutre também seu povo na seca. Os sertanejos descascam a batata da macambira e dela fazem massa, que cozinham como macaxeira; retiram os espinhos da coroa-de-frade, ralam-na, espremem e botam para secar; quando essa farinha seca, fazem cuscuz. Do facheiro, do xique-xique e da palma, comem a fruta no inverno; no estio, a palma é descascada e aferventada; joga-se a água fora e cozinha-se ou refoga-se, temperada e cortada em pedacinhos. Comem ainda o entrecosto do pau-da-serra e o bró do ouricuri[17].

Frutos de cactos são iguaria no Mediterrâneo. Na sua Viagem pelo Brasil, Martius já observara que

"essas plantas singulares, sem folhas, dotadas de especial capacidade de atrair e condensar a umidade da atmosfera, servem de refresco para os animais sedentos. (...) Os frutos dos cactos também se comem, não tanto, porém, como no Sul da Europa"[18].

Quando o Brasil adquirir o hábito de comer frutos de cactos, a forragem dessas plantas será o subproduto de uma fruticultura exclusiva das terras áridas ¾ já pródigas de icós, juás, umbus, pinhas, muricis, cajus, cajuís, e de tantas outras do tempo verde.



Fauna acuada

A fauna do raso ainda é abundante: veados, caititus, tatus, tejus, pebas, preás, coelhos, mocós, onças, gatos, abelhas, emas, seriemas, sericóias, pacus, rolas bravas e uma grande variedade de aves, atraindo caçadores àquele espaço ¾ embora a caça seja proibida em todo o território nacional.

O Ibama está sem condições de trabalho, ou ¾ como algumas espécies ¾ ameaçado de extinção. Suas instalações foram abandonadas ao intemperismo do deserto. As casas que deveriam abrigar os guardas vêm sendo depredadas por grupos de caçadores ¾ que, numerosos e armados, intimidam os guardas solitários. Como reconheceu o Radambrasil: “no Raso da Catarina, por exemplo, o ecosistema se mantém em virtude da própria hostilidade[19].” Ainda bem que os bichos têm a proteção dos avôzinhos – as entidades que vaquejam as matas do mundo Pankararé.

Matas mal-assombradas: no começo dos anos sessentas virou um carro da Petrobrás, na ladeira da Cabeça do Gato. O motorista morreu. Ainda hoje aparecem faróis acesos na noite do Raso. A luz chega até a cancela da Casa do Ibama, na entrada da Reserva Ecológica. Quem tem coragem para ir ver, não encontra nada. Mas algumas pessoas, como Dedé da Catarina, já encontraram caveira de gente na campa do Raso.

Os topônimos são quase todos precedidos da palavra baixio, pois o Raso é uma grande planura: Baixio do Cachimbo, do Fogueteiro, da Juremeira, do Rancho da Palha, da Arapiraca, do Jatobá da Onça, do Veado, da Imburana Ferrada, do Juazeiro, da Queixada de Mané do Bode, da Lagoa Seca, do Araticum, da Catarina, do Sítio do Chico ¾ onde vivem os últimos Pankararés.

Em tempo: quem quiser acesso à Reserva Ecológica tem de justificar seu pedido à delegacia do Ibama (km 40 da BR-110, Jeremoabo Paulo Afonso).

Vaqueirice

Os pastos nativos ainda mantém ¾ principalmente na seca ¾ os rebanhos bovinos, ovinos, caprinos e eqüinos dos criadores da região. O gado do Raso conserva as características de sua origem européia. No gado bovino, de porte, vêem-se traços das raças Canária, Asturiana, Lídia, Almeriana e Pirenaica, que, mestiçadas, deram origem à Caracu e Curraleira. E há os resistentes cavalos Nordestinos, descendentes dos Garranos portugueses, por sua vez descendentes dos Berberes.

É de se lembrar o aboio nostálgico de Guimarães Duque:

"quando os vaqueiros de Garcia D'Ávila, da Casa da Torre, trouxeram o primeiro boi para o São Francisco, eles ensinaram uma lição de ecologia que duraria séculos"[20].

As cabras descendem das Pretas Murcianas, conhecidas por Craúnas, ou Pretas Retintas; das Serranas, ou Trasmontanas, e das Brancas e Pardas Pirenaicas, apelidadas de Marotas[21], Moxotós e Gurguéias; das simplesmente Azuis, encontradas na margem norte do Mediterrâneo, da Ibéria aos Bálcãs; e das Las Manchas, rebatizadas como Nambis, Landis ou Uriós, de orelhas pequenas, que lhes permitem acesso aos espinheiros. Estas últimas têm menos odor hircino (almíscar dos caprinos), e, por isso, seu leite é o mais palatável ¾ sabe Zuzu, pastora Pankararé.

A ovelha Rabo Largo (assim chamada por concentrar na cauda uma reserva de gordura para o estio), de pouca lã, descende da Damara ibérica; e a deslanada Cabeça Preta descende da Somali africana, que também tem reserva de gordura, acumulada numa geba na garupa. E há um tipo raro de ovelha, de lã e quatro chifres, conhecida na região pelo nome de Cocorobó ¾ topônimo do açude que alagou Canudos. Originária da Península Ibérica, a ovelha de quatro chifres também é encontrada no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde é conhecida como “Crioula”[22].

Algumas cabras e ovelhas são criadas em regime de vaqueirice[23], ou seja, os animais são de terceiros, e os índios, ou vaqueiros, ficam com a sorte de uma em três crias. Os índios não têm bois e cavalos; sua pobreza só lhes permite criar pequenos ruminantes.

O vinho ajucá

Os Pankararés são uma possível blendagem de Abacatiaras, Amoipiras, Brankarus, Camacãs, Cariris, Pataxós e Procás, pertencentes aos grupos Gê, Tapuia e Tupi. As margens do São Francisco são uma aljava de raças indígenas, e os Pankararés absorveram sangue e traços culturais de todos esses povos. Recrutados para a guerra do Paraguai, trouxeram para a sua língua palavras guaranis. Mais recentemente, incorporaram ao seu variado patrimônio genético os elementos negro e branco.

Os Pankararés ocupam duas reservas: a do Chico, no Raso, com 29.597 ha; e a do Brejo do Bugre Pankararé, na periferia do Raso (município de Glória[24]), com 17.700 ha, sob a chefia de Afonso Cacique. Em Brejo do Bugre os índios têm tido conflitos com neo-brasileiros (invasores brancos), mas, no Chico, vivem isolados e em paz. Seu chefe é Lino Caçador. É no Chico que se realiza a Festa de São Roque, no dia 15 de agosto, quando toda a sociedade Pankararé se reúne. O costume foi iniciado pelo patriarca Saturnino, já falecido, mas sempre lembrado pelo seu povo.

Aculturados, os Pankararés praticam a religião católica. Mas dançam o toré[25], como na homenagem a São Roque, e ainda fazem o ajucá — vinho sagrado, iniciático e revelador, extraído da jurema e do jucá (pau-ferro, com que se faz também bordunas)[26]. Eles ainda preservam o ritual do imbu[27] ¾ celebrado sincreticamente com os ritos cristãos. Uma lenda Pankararé diz que o Paraíso fica na cachoeira de Paulo Afonso[28] (a Europa de Colombo também pensava que ficava na América).
"Meu pai me criou
com caça do mato."

As cantadeiras (índias velhas) sabem de coisas. Dão um nó no vestido para amarrar cobra: a serpente não sai mais do lugar, até alguém matá-la. Se a mulher estiver nas regras, basta enguiçá-la (dar um passo por cima): a cobra morre. Vacina Pankararé contra picada: engolir o coração da víbora. Mas o Raso tem poucas cobras. Elas proliferam onde há roças de grãos para alimentar o rato europeu (a América pré-colombiana não tinha ratos). A cultura intensiva de grãos, além de alimentar os ratos, destruiu os inimigos naturais das serpentes: a seriema, o gavião, o teiú. Esse lagarto também sabe de coisas: quando picado, morde a raiz da cabeça-de-negro. O índios criavam a cobra-preta (muçurana) dentro de casa. Ela é ofiófaga: come as outras cobras. Muçurana é manhosa. As cantadeiras dizem que ela gosta de leite humano: bota a ponta da cauda na boca do menino, enquanto mama na mãe sonolenta.

Os Pankararés plantam milho, feijão e raízes no baixio de seu formidável cañon. Criam cabras e ovelhas, e se casam cedo. Helena, 21, tem cinco filhos. Casou-se aos 14, com um menino de 12. "Por isso, passei dois anos sem ganhar nenen." A diferença de idade entre o guia Antônio e seu pai, Hercílio Pajé, é de 12 anos. "Pai me criou com caça do mato", conta, orgulhoso, o filho do feiticeiro (praiá[29], em bom pankararé).


Fonte da força

Josué de Castro explica porque o sertanejo mereceu o famoso epíteto de Euclides da Cunha: "...antes de tudo, um forte[30]". Em Geografia da Fome, o notável nutricionista mostra como a dieta do sertanejo nordestino é, "talvez, a mais racional e equilibrada do país, incluindo as zonas isentas de fome[31]". O sertanejo tem uma alimentação sólida,

porém bem equilibrada, a qual constitui um bom exemplo de como pode um grupo humano retirar de um meio pobre recursos adequados às necessidades básicas da vida[32].

Castro refere a observação de Orlando Parahim, de que seja "a riqueza da luz solar do nordeste capaz de provocar sínteses inéditas de vitaminas[33]." Na Geografia da Fome, "as águas sertanejas são, em geral, de alto grau de dureza, águas calcárias que ajudam no abastecimento em cálcio[34]." E a fome só se apresenta

"episodicamente em surtos epidêmicos. Surtos agudos de fome que surgem com as secas, intercaladas ciclicamente com os períodos de relativa abundância que caracterizam a vida do sertanejo nas épocas de normalidade"[35].

Já o economista Celso Furtado, ele próprio um natural do Semi-Árido Irregular, observa que

"as condições de trabalho e alimentação na pecuária eram tais que propiciavam um forte crescimento vegetativo de sua própria força de trabalho".[36]

Salvo melhor juízo, deve ter sido Khaldûn o primeiro a comparar e comentar os efeitos da super e da subalimentação:

"(...) os homens acostumados a viverem na riqueza e entregues aos prazeres são os primeiros a sucumbir à morte que os anos de seca trazem com as privações. (...) A seca e a penúria não fazem mal a estes como àqueles, que vivem na opulência (...). Os que, pois, morrem vitimados pela seca e pela penúria, perecem menos em conseqüência de uma fome atual do que por efeito desta abundância a que se tinham anteriormente acostumado. (...) Convém saber que a fome é, de toda maneira, mais favorável ao homem de que uma superalimentação, conquanto possa ele acostumar-se à abstinência e contentar-se com pouca comida"[37].

Sem trocadilho, pode-se dizer que o regime de parceria (onde se enquadra a vaqueirice) é a causa principal do regime alimentar do sertanejo e da força que tanto impressionou Euclides[38]. O guia Antônio Pankararé (1,60 m de altura, 88 kg de músculos) explica como planta na terra dos outros (fora do Raso): "tudo o que eu plantar e colher é meu; o dono só quer a terra limpa para semear capim." É como se o trabalhador fosse um sócio com desfrute absoluto dos lucros, dispensado até dos impostos. Por isso são raros os conflitos sociais no Sertão.

O povo é forte, mas também adoece[39]: João Caboclo, 64, do aldeamento do Chico, caçava onças à cacete. Há cinco anos está sem andar. O índio diz que suas pernas ficaram entrevadas de tanto correr atrás de onça, descalço, sem cavalo nem cachorro.

Avena, aventura

A estepe e a noite se deitaram juntas,
paralelas as asas sobre as asas.
Jorge de Lima[40]

À noite, o céu também acende suas flores. Alvas e limpas flores de prata, como as lava-pratos da mata. Longe das luzes da rua, as flores tímidas do céu saem de suas moitas escuras. As flores do céu não têm as cores das flores do mato, as flores douradas e multicores dos espinhos. Mas são tantas quanto suas humildes rivais do rés do chão. Quando o vento frio do Raso vem amolar os espinhos, traz o relento das florinhas do céu para aguar as estrelinhas do mato. As florezinhas do céu florescem mais no verão, suas pétalas rebrilhando, molhadas, na seca. É nelas que saciam sua sede os avôzinhos.

Antônio Pankararé, filho de Hercílio Pajé, já viu avôzinhos. Eles vinham encourados, à cavalo, e passaram bem junto de Antônio, que cavava um tatu. Sua mulher, que estava ao lado, não viu ninguém. Antônio mostrou-os à mulher; os avôzinhos não gostaram, lhe deram uma surra de cansanção. O índio chegou em casa com as costas em fogo.

Quando alguém pergunta ao Pajé pelos avôzinhos, seu rosto iluminado não diz mais nada.

Uma avena vela o sonho das corezinhas. É Pixinguinha descendo a serra, carinhoso, no sopro e nas mãos de Alba: o fotógrafo Antônio Augusto conduz sua luz. Bach tem muitos minuetos, Alba avena o de número 20. Kuhlau foi o mestre de Beethoven; seu sopro atravessa o tempo até o espaço do Raso, no Duo para Flauta e para os lábios avenados.

Esse silêncio do Raso, tão profundo, vem da platéia atenta de avôzinhos.

Bom deserto

Utilizamos dois jipes: um Ford equipado com diferenciais bloqueados, pneus militares 700/16 protegidos com preventivo antifuros Tirol (mais dois suportes), e um Niva, com tração permanente nas quatro rodas. É imprudência adentrar o Raso com apenas um veículo. Há riscos de encalhamento, de acidentes e de panes[41].
O Niva (colocado à nossa disposição pela delegacia local do Ibama) estava sem a alavanca de bloqueio do diferencial central. Atolou na saída para Brejo do Bugre; no Baixio do Araticum patinhou uma roda, e as outras três ficaram inermes. É o efeito perverso do diferencial central, que permite a tração permanente mas pode desligar um dos eixos. Importante: para se obter tração integral é preciso bloquear todos os diferenciais. Se apenas o diferencial central for bloqueado, as transmissões ficarão com rotação igual ¾ mas não as rodas, que ainda estarão sujeitas à "diferença" de rotação administrada pelo diferencial respectivo. Em lugares como o Raso, faz muita diferença.

Leve mapas (o Exército tem quatro[42], bem detalhados; o Radambrasil tem sete[43]). Leve bússola, aguada, alimentos, medicamentos, combustível, guincho, ferramentas, facões, fogões, lanternas, barracas, agasalhos etc. O Raso tem dias quentes e noites frias, como todo bom deserto. Na volta, deixe parte de sua bagagem com os índios. São muito pobres.

A aguada e a munição de boca devem ser bastantes para uma demora maior que a prevista, pois nunca se sabe quando se vai sair das profundas do Raso. Um rádio PX não será demais. É indispensável um guia nativo, como o eficiente Antônio Pankararé (mora no km 18 da BR-110, Jeremoabo Paulo Afonso). Perder-se no Raso da Catarina tem sido fatal para muitos aventureiros.

Os jipes retornam menos carregados; mas os olhos, os corações e a mente voltam repletos da forte paisagem e sua forma de vida. "Nunca mais se é o mesmo quando se vem ao Raso da Catarina" — afirma Antônio Augusto, o Zorba. Ele, que fotografa a região há 10 anos, já revela os mistérios da terra tão bem como um guia da caatinga: em cores, como as estrelinhas da mata, ou em preto e branco, como as florezinhas do céu.

Faça as malas

O acesso ao Raso da Catarina só é possível com veículos de tração nas quatro rodas. O motocross não é recomendável, por conta dos espinhos que invadem as trilhas. O Centro de Turismo e a Associação de Guias de Paulo Afonso organizam excursões ao Raso. Há vários ônibus diários para Recife e Salvador. Quem quiser ir no seu jipe, pode Sair de Salvador pela BR-110 até Jeremoabo. São 400 km de asfalto ruim. Jeremoabo, 40 mil habitantes, é a cidade periférica do Raso mais próxima do litoral.

Segundo a imprensa local, as estradas do Sertão de Pernambuco estão infestadas de cangaceiros. Evite viagens noturnas: as estradas do oeste de Alagoas, de Sergipe e do Norte da Bahia não oferecem muita segurança. Mas o Raso é tranqüilo.

A ilha fluvial de Paulo Afonso é uma boa opção como base para quem vai ao Raso. Tem 90 mil habitantes e uma infra-estrutura razoável. O Centro Turístico promove passeios de lancha nas represas de Paulo Afonso e Xingó, enquanto não forem privatizadas.

[1]Cunha, E., Os Sertões, S. Paulo, op. cit., 1994, p. 45.
[2]“(...) Silva aestu aphylla, quam dictunt caa-tinga, in provinciæ bahiensis deserto australi.” Martius, C., Flora Brasiliensis, Weinheim, Cramer, et New York, Wheldon & Wesley, 1965; 15. vol., volumen I, pars I, pp. XXX-XXXI.
[3]Lisboa, A., O Problema das Seccas, conferência de 28-8-1913, in Memoria da Seca, op. cit., p. 126.
[4]Cunha, E., op. cit., p. 43.
[5]Carrasco: palavra que define os terrenos secos e pedregosos, em Portugal e no Nordeste Brasileiro. O termo que denomina o executor dos condenados à morte é originário do patronímico do meirinho Belchior Nunes Carrasco, que no século XVII era verdugo em Lisboa. Q. V. Aulete, Aurélio e Michaelis.
[6]Duque, J. G., O Nordeste e as Lavouras Xerófilas, Mossoró, op. cit., p. 169.
[7]Cf. Bandeira, F., Um Estudo em Perspectiva: Etnopedologia e Etno-ecogeografia do Grupo Indígena Pankararé, Cadernos de Geociências, Salvador, UFBA, Inst. de Geociências, nov. 1996, p. 121 e outras.
[8]Ministério das Minas e Energia, Projeto Radambrasil, Levantamento de Recursos Naturais, Vol. 30, Rio, 1983, 1a ed., 1a impr., p. 625.
[9]“Unde jam gens Tupinambares silvas illas nome Caa-tinga, i. e. collucaturum appelavit, quæ vox a Brasilianis corrupta dicitur est scribitur Catinga. Altera hujus aridæ vegetationis forma nominatur a Brasilianis Carrasco, virgulta, vel Mato carrasquento, silva horrida.” Martius, op. cit., volumen I, pars I, pp. XXX-XXXI.
[10]Alighieri, D., Commedia, Inferno, Canto I, 5, Milano, Mursia, 3ª ed., 1965, p. 27: Ah quanto a dir qual era è cosa dura / esta selva selvaggia e aspra e forte / che nel pensier rinnova la paura!
[11]Cf. Benchetrit, Cabot & Dastès, Géographie Zonale des Régions Chaudes, Paris, Nathan, 1971, p. 132.
[12]Tavares, S. et alii, Estudos do Paleoclima da Região Semi-Árida do Nordeste Brasileiro - Centro Técnico Aeroespacial — Ministério da Aeronáutica — S. José dos Campos - 1987, p. 21.
[13]Ministério do Exército, Diretoria de Serviço Geográfico, Brasília, 1985, 1a ed., 1a impr., Folha de Santa Brígida, (SC. 24—X—C—V, NI-1595).
[14]Segundo Bismark Martins de Oliveira, Azulão entrou no cangaço porque violentara uma das irmãs e temia a punição do pai. Facínoras que violentavam as próprias irmãs, pior faziam com as moças e mulheres que encontravam em seu caminho. ——, O Cangaceirismo no Nordeste, Brasília, Senado Federal, 1988, p. 121.
[15]O escritor Ariano Suassuna, em sua casa na fazenda Carnaúbas, sobre Os Sertões: “a obra atingiu a altura do tema”.
[16]Cf. Martius: “(...) verum tamen est, quo adijiciamus, Sertaô, locum desertum, apud Brasilianos non dici de aliqua harum vegetationis formarum, sed de loco incolis vacuo, unde potest accidere, ut in iis terræ partibus, quæ pro antiquo more hic illia apellantur Sertaô, diversissimas deprehendas vegetationis formas, silvas, campos, catingas, virgulta, charnecas.” —, op. cit., volumen I, pars I, pp. XXX-XXXI.
[17]Cf. Pinto, Estevão, Muxarabis & Balcões, S. Paulo, Ed. Nacional, Brasiliana, Vol. 303, 1958, pp. 43-44.
[18]Spix & Martius, Viagem pelo Brasil, S. Paulo, Melhoramentos, 1976, p. 190; ——, Através da Bahia (excertos de Viagem pelo Brasil), S. Paulo, Ed. Nacional, Brasiliana, 1938, série 5ª, vol. 118, p. 253.
[19]Ministério das Minas e Energia, op. cit., p. 428.
[20]Duque, J. G., Solo e Água no Polígono das Secas, Fortaleza, op. cit., pp. 86/87.
[21]Cf. Domingues, O., A Cabra na Paisagem do Nordeste, op. cit., p. 53.
[22]Cf. Porto, A., Tradição Crioula, Revista Globo Rural, São Paulo, Ed. Globo, n.º 130, agosto 1996, pp. 32-37.
[23]A vaqueirice é uma relação de trabalho que remonta aos tempos da colonização. Martius registrou o fato, já praticado nas fazendas da Coroa no Piauí: “O ordenado desses vaqueiros, que às vezes servem durante anos, sem remuneração até receberem paga, consiste na quarta parte de todos os bois e cavalos criados anualmente na fazenda. Além disso, têm morada grátis, direito aos produtos da criação de porcos, cabras e carneiros, e à produção de manteiga e queijos (...). —— Viagem pelo Brasil, op. cit., p. 215.
Celso Furtado também aborda a vaqueirice, rapidamente, na Formação Econômica do Brasil, cit., p. 64.
[24]Cf. Pinto, E., op. cit., p. 35.
[25]Cf.——, cit., p. 37.
[26]Cf.——, cit., pp. 36/39/41/42.
[27]Cf.——, cit., pp. 39-41.
[28]Cf.——, cit., pp. 36/46/50.
[29]Cf.——, op. cit., pp. 37 e outras; Meader, R., Índios do Nordeste, Brasília, Summer Institute of Linguistics, 1978, p. 43.
[30]Cunha, E., op. cit., p. 95.
[31]Castro, J., Geografia da Fome, op. cit., p.160.
[32]——, cit., pp. 173/174.
[33]——, cit., p. 187.
[34]——, cit., p. 187
[35]——, Nordeste, cit., p. 159.
[36]Furtado, C., Formação Econômica do Brasil, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1968, p. 67.
[37]Khaldûn, op,. cit., tomo primeiro, Quinto Discurso Preliminar, pp. 139-140-142; ——, The Muqaddimah, vol. one, Fifth Prefatory Discussion, pp. 180/182: It can also be noted those people who, whether they inhabit the desert or settled areas and cities, live a life of abundance and have all the good things to eat, die more quickly than others when a drought or famine comes upon them. (...) When a drought or a famine strikes them, it does not kill as many of them as the other group of people, and few, if any, die of hunger. (...) It should be known that everybody who is able to suffer hunger or eat only little, is phisically better off if he stays hungry than if he eats too much. ——, Discours sur L’Histoire Universelle — Al Muqaddima, pp. 137/138: (...) ceux qui vivent dans l’abondance et la bonne chère meurent plus vite que les autres de la sécheresse ou de la famine.. (...) tous paient un moins lourd trubut qui d’autres à la sécheresse ou à la famine (...). Ceux qui meurent pendant les famines sont victimes de leur régime alimentaire antérieur de satiété, non de la faim qui les touche pour la première fois. (...) Il faut savoir qui celui qui peut résister à la faim ou manger très peu est en meilleure condition physique s’il rest affamé que s’il mange trop.
[38]A vaqueirice que Euclides encontrou na Bahia era diferente do restante do Sair — se não no espaço, pelo menos no tempo. Àquela época, Segundo Euclides, “o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. (...) usufruem, parasitàriamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos.
“Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos — nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra (...) e cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não pertencem.
“O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par. Não os fiscaliza.” Mas o próprio Euclides reconhece singular relação entre “senhor” e “servo”, no tratamento presente na corespondência: “Subscrevendo as cartas repugna-lhe a forma vulgar: am. e criado; substitui-a ingênuamente por outra: seu amigo vaqueiro F. ——, Os Sertões, Francisco Alves, op. cit., pp. 108/109. Idem, Círculo do Livro, op. cit., pp. 101/102. A substituição da subscrição não se dava “ingênuamente”, como viu a pressa de Euclides; mas conscientemente — da liberdade e da altivez do sertanejo, presente até hoje nas relações de trabalho com o proprietário da terra.
Esse era o procedimento adotado pela Casa da Torre, dona de quase todo o interior da Bahia e de grande parte do Sair de Pernambuco e Paraíba. Mas não era essa a regra no restante do Sair; assim, onde os coronéis? Onde os fazendeiros, tantas vezes acusados de dar coito aos cangaceiros, quando não eram vítimas destes rapineiros? Onde os proprietários rurais do Sair, que tão bravamente lutaram na guerra da independência brasileira — que no Nordeste não foi uma bravata às margens do Ipiranga, mas uma “boa guerra”, ao gosto de Nietzsche.
[39]Assim o Doutor Martius dá seu diagnóstico sobre a longevidade e a decadência dos índios camacãs: “Alcançam os camacãs idade avançada; conheci um deles de cem anos, cujo cabelo estava apenas grisalho, ainda não embranquecido. No convívio dos brancos aumenta a sua mortalidade, e sucumbem principalmente às bexigas ou outras febres agudas.” ——, Viagem pelo Brasil, op. cit., p. 169.
[40]Lima, J., op. cit., p. 764.
[41]No quarto dia, Antonio do Ibama, motorista do Niva, precisou partir. O fotógrafo Antônio Augusto queria ficar. Dispensei o Niva. No retorno, a trilha estava coberta de flores e não vi o que atingiu meu jipe por baixo. Ficou um ruído na transmissão dianteira. Não dividi meu medo com os companheiros. Dirigi só com tração traseira, na trilha estreita, sinuosa e arenosa, em velocidade acima do limite — para não atolar. Cheguei ao Brejo do Bugre — na saída do Raso — tão exausto que me deitei inerme no chão, pensando que ia morrer. Sete meses depois, na mesa da angioplastia, o cirurgião me disse: “Você já teve um enfarte.” Então me lembrei que meu coração ficara na Catarina.
[42]Ministério do Exército, Diretoria de Serviço Geográfico, Brasília, 1985, 1a ed., 1a impr., folhas de Paulo Afonso (SC. 24—X—C—II, NI-1520), Santa Brígida, cit., (SC. 24—X—C—V, NI-1595), Canché (SC. 24—X—C—IV, NI-1594) e Salgado do Melão (SC. 24—X—C—I, NI-1519).
[43]Ministério das Minas e Energia, op. cit., apêndice, Folhas SC. 24-25 Aracaju/Recife.