segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Artigos do livro "Raposa do Planalto"

MINISTRO DA TORTURA



O futuro ministro da Aeronáutica é um ex-torturador do Dói-Codi. A denúncia partiu do jornalista Rubens Lemos, preso e torturado pela ainda recente ditadura militar de 1964-84 sob a acusação de pertencer ao PCBR, — Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, — de que alguns preferiam traduzir o “R” de sua sigla como “do Recife”, cidade onde a organização teve origem.


Rubens Lemos, atualmente militante da imprensa no Rio Grande do Norte, foi prisioneiro do Dói-Codi em Pernambuco durante a última ditadura. Na prisão, foi interrogado por um meirinho de trajes civis. Os interrogadores e torturadores da ditadura apresentavam-se anônimos e, às vezes, encapuçados diante de suas vítimas. Rubens Lemos gravou a fisionomia daquele “civil” que o interrogou nas dependências do Dói-Codi, no Recife, assim como sua voz.

As vítimas também arquivam a imagem e a voz de seus interrogadores. Frei Tito, por exemplo, fixou de tal forma a imagem do famigerado Fleury, que ficou vendo a assombração de seu torturador muito tempo depois de sua soltura, até mesmo na França, onde se exilou e se matou tangido pelo delírio persecutório. Este mês, Rubens Lemos reconheceu um de seus algozes na pessoa do futuro ministro da Aeronáutica, brigadeiro Sócrates Monteiro, quando os ministros militares do próximo governo foram apresentados na televisão.


Lemos foi torturado durante o ano de 1973. dezessete anos depois, identificou o rosto do homem que o interrogou na prisão. Provavelmente a ficha de Lemos está no SNI cm o relatório de seus interrogadores. Agora, quando se diz que a ditadura terminou, seus carrascos são elevados á condição de ministros. É conveniente, portanto, que a memória oficial da ditadura desapareça. Por essas e outras querem incineraros arquivos do SNI, onde repousam o destino dos desaparecidos, as confissões dos torurados e os relatórios de seus interrogadores, — amanhã, como hoje, ministros de estado.


É de se perguntar: a ditadura terminou ou continua, agora disfarçada nos trajes civis da democracia? As recentes eleições dariam margem às oposições ganharem, ou seriam um risco calculado? E se as oposições ganhassem, tomariam posse? Concluiriam o governo?Esta semana, o ex-seqüestrado Abílio Diniz prestou o segundo depoimento “aliviando” as acusações que fizera contra seus seqüestradores. Como se recorda, o seqüestro de Abílio Diniz, dono da cadeia de supermercados Pão de Açúcar, se deu na última semana da eleição.

Na véspera do pleito a polícia localizou o cárcere privado onde o empresário era mantido; durante todomo dia da votação as emissoras de TV proporcionaram o suspense da soltura do empresário, fato que só veio acontecer no fechamento das urnas, enquanto insinuavam suspeitas de ser a oposição responsável pelo seqüestro.


O atentado teria sido organizado por ativistas políticos chilenos e brasileiros, diziam a polícia e a TV. Ora, as esquerdas acabavam de ganhar as eleições no Chile e corriam o risco de ganhar no Brasil. O seqüestro, se tivesse objetivo político, só interessaria á direita, — como serviu a elas, de fato. Agora, a vítima favorece os seqüestradores no seu segundo depoimento, contradizendo o primeiro. A charada está explicada.


Eis as formas não tão sutis do continuísmo da ditadura. Eleições ganhas mediante catimbas, chicanas, calúnias e simulações, e a promoção dos quadros da ditadura, dos meirinhos da tortura ao primeiro escalão do governo. Os carcereiros de ontem serão os ministros de amanhã, o golpe militar não sofreu solução de continuidade. Por vias das dúvidas, queima-se o arquivo do SNI, sepulta-se a memória da inquisição. Mas há sobreviventes. Da cinza das fogueiras levanta-se a voz remanescente da morte. Rubens Lemos depõe outra vez. Que bom te ver vivo, companheiro.


25/01/1990


COMO ROUBAR SEU DINHEIRO

O segundo confisco já vigora de fato. Recolhidos oitenta por cento da moeda, os vinte restantes não foram postos em circulação. Permanecem engavetados nos bancos, liberados em conta-gotas de cinco em cinco mil cruzeiros, às vezes três. Dias desse, Bau[1] me disse: “aprendi a roubar meu dinheiro. Entro no banco, saco um cheque nominal de cinco, volto para a fila e saco outro. Até os caixas decorarem a minha cara.” Outros levam a família, cada qual com um cheque nominal de três ou cinco mil, cada qual abordando um caixa diferente.

É por isso que a Globo e o governo estão dizendo que os depósitos dobraram, que novas cadernetas de poupança estão sendo abertas. Os depósitos são compulsórios, pois o correntista não saca nem seu salário. E s cadernetas são a alternativa para o depósito compulsório: já que o fulano não pode scar, deixa na poupança a oito por cento ao mês, — índice muito longe de representar a inflação zero, como a Globo e o governo dizem. Acredito muito mais em baú Montenegro, tão sabido que aprendeu a roubar o dinheiro dele mesmo.

Outro que não é besta, o doutor Antônio Ermírio de Moraes. Telefonou ao presidente e disse: “não vou tomar meu dinheiro emprestado a trinta por cento para pagar minha folha”. Se não aparecer outra solução, doutor Antônio vai demitir algumas dezenas de milhares e trabalhadores e fazer um comício, debitando ao presidente a responsabilidade pelo corte. Foi o qu ele disse no telefone e no jornal. Mas poucos têm acesso ao jornal, e ao telefone de Brasília como o doutor Antônio. Coitado, dizem que perdeu meio bilhão de dólares, embotijados no over[2]. Podia ter gasto esses trocados na campanha, quando quiseram fazê-lo candidato, e hoje ser presidente. Agora, nem mel nem cabaça. Ta provado que gente rica não sabe o que fazer com o dinheiro. Se Bau tivesse essa grana, eu seria amigo do rei.

O pior é que muito comerciante não está aceitando cheque. Tanto faz ter fundos ou não, ninguém desconta. Os cruzeiros ficam retidos como cruzados novos. E haja depósitos, novas poupanças, até o próximo ano. É a única forma de se recuperar a confiança na instituição bancária: o depósito na marra. Ninguém confia no banco; por sua vez, o governo não confia em ninguém.— O que é que vocês vão fazer com dinheiro no bolso? — pergunta o governo.— Não gastem, adquiram somo necessário, pechinchem, pechinchem, — sugere o governo. Já ouvi um discurso parecido, quando era menino. Só falta uma frase:— Deixa que eu guardo para você não perder.

Eis a sentença que, se ausente no discurso, está sendo praticada, de fato, pela autoridade monetária.

Diz-se que não há moeda sonante para atender a demanda dos saques, depois que o povo ficou escaldado com o plano. Diz-se que nesses últimos 30 dias já se emitiu mais moeda que em todo o governo Sarney, e não chega pra quem quer. Diz-se que caiu um avião cheio de dinheiro lá pras bandas de Minas. Tinha que ser em Minas[3].. Diz-se muita coisa, só não se diz que o cruzeiro está retido, com o saque limitado a três ou cinco milhas, ou vinte, — se o banco for forte. Daqui a pouco podem reter os talões de cheques, passarem a fornecer apenas cheques avulsos de cinco por cabeça.

É melhor fazer como naquele país comunista onde ninguém pega em dinheiro. O trabalhador vai ao mercado com a caderneta bancária no bolso, compra e o caixa lança o débito. Não há troco, a moeda é de César.

17/04/1990

DÁ-LHE, COLLOR

Qualquer país do mundo gostaria e ter Lúcio Costa e Oscar Niemeyer no seu quadro de funcionários. Os dois projetaram não apenas Brasília, mas projetarammo Brasil, entre as nações, como uma terra que dá não apenas samba, futebol e cachaça. Agora, o Brasil, no seu novo plano econômico, demite o urbanista e o arquiteto, na intenção de contenção de despesas, como dois funcionários ociosos.

A discriminação contra Niemeyer vem de longe. Na inauguração de Brasília, foi barrado na solenidade porque não estava vestido a rigor. Durante a ditadura militar, a Aeronáutica condenou a planta para o novo aeroporto de Brasília. Essa injustiça foi corrigida pelo México, quando seu governo aprovou, em concorrência, a planta do aeroporto que havia sido projetado para Brasília. O México aprovou, construiu e deu, ao aeroporto de sua capital, o nome de Oscar Niemeyer.

Brasília foi consagrada como a maior obra arquitetônica da contemporaneidade, revolucionando a urbanística e o conceito do espaço humano. Vem o novo governo, que diz pretender a construção de um Brasil moderno, e demite o urbanista e o arquiteto que projetaram o Brasil da modernidade.Foram considerados marajás onerosos e ultrapassados. Enquanto isso, só o gabinete da Vice-Presidência nomeia quase um milhar de servidores. E Niemeyer declara que nunca recebeu nem um centavo pelo seu cargo de assessor do Ministério da Cultura. Só sendo comunista, o que Niemeyer não nega. Um marajá comunista, que não quer receber dinheiro pelo seu trabalho, coisa que a Constituição proíbe. E que o novo governo, no seu juramento de respeito à Carta Magna, não pode admitir. E jogou no olho da rua o Niemeyer, um marajá que se pretende pária.

Não sei se Niemeyer projetou algum asilo de velhos em Brasília. É provável que não. Brasília fez 25 anos e ainda é uma cidade carente de velhos. Salvo melhor informação, me parece que Niemeyer, 82, e Lúcio Costa, 88, não moram na Capital. Prestavam seus serviços à distância. É isso aí. Aquele arquiteto que dirigiu a restauração do Louvre executou seu trabalho desde Nova York, via fax. Ninguém se admire, portanto, pelo fato de Niemeyer e Lúcio Costa não residirem na Capital, onde tinham cargos de assessoria.

E mesmo que nada fizessem, já fizeram muito. Um nada recebia; outro, na velhice de 88 anos, confessou que a gratificação de assessor era um adjutório para sua aposentadoria. Para piorar a situação, eles pagam imposto de renda, e, portanto, não podem sacar sua poupança bloqueada, mesmo sendo maiores de 80 e demitidos. Se tivessem contas na Suíça, como muitos marajás, não estariam passando esse vexame na velhice. Mas foram confiar no governo cuja sede projetaram e ganharam o leito da rua.

Esse Lúcio costa deve ser outro comunista como Niemeyer. Tempos atrás, forram consultá-lo por onde devia-se fazer passarelas para o povo atravessar os eixos de Brasília. O povo não estava praticando os túneis de pedestres, que, se diga, são muito cavernosos e perigosos, principalmente à noite. O povo, assim, improvisou seus próprios atalhos, estreitos e sinuosos caminhos cortando os largos de Brasília. O povo sabe que a reta não é a menor distância entre dois pontos, como provou Einstein, e que, quem anda em linha reta não pode ir muito longe, como comprovou o Pequeno Príncipe. E fez os atalhos de Brasília tortuosos e estreitos, como as veredas da salvação.

Pois Lúcio Costa, o homem que projetou Brasília sem atalhos, agora demitido pelo novo governo, teve o desplante de responder, na condição de assessor, que fizessem as passarelas por onde o povo estava passando, obedecendo ao mesmo trajeto traçado pelos pés do povo. Justificou: “o povo abe seu caminho”. E emitiram o velho.

17/05/1990

ZÉLIA, MAIS OU MENOS 35

O Senado quer saber quem sacou dinheiro durante o feriado bancário na transição dos governos. O Senado quer saber quem e quanto, mas a ministra não quer dizer. Daí os senadores quererem processar a ministra Zélia, no que, talvez, eles estejam equivocados. É possível que o Conselho de Anciãos não se lembre, mas a ministra não é a moça. Todo mundo viu o presidente dizer que o ministro da Economia era ele, que o responsável pelo Planocoll era ele, o fracasso ou o sucesso deveriam ser atribuídos a ele, e não a ela.

Portanto, o Conselho de Anciãos deveria deixara moça em paz e augüir o responsável: — quem sacou com o banco fechado?

Eis a chance para uma nova modalidade de golpe que os escroques de plantão podem aplicar. Quem sacou cruzados com o banco fechado pode voltar a sacar a mesma importância em cruzeiros, outra vez. Sim, pois como é que o banco pode provar que o cliente sacou, se a porta estava fechada, o caixa fechado, o banco fechado por decreto, e a moeda em fase de metamorfose?

Entre os dias 15 e 20 de março, o cruzado havia sido extinto e o cruzeiro ainda não havia renascido. Além disso, o cofre do banco estava fechado, só quem tinha o cadeado da torneira era o presidente.Como é que o chafariz sem água e com a torneira trancada pode verter? Eis um mistério que só a metafísica exatorial pode elucidar.Doutor Roberto Campos, formado em Teologia e Finanças, e que, segundo ele, primeiro aprendeu a enganar a Deus,poderá, quem sabe, explicar. Mesmo assim, tão hábil e versátil, ele revelou: “me senti pungado”.

Quem pungou o senador Roberto Campos, ex-ministro do Planejamento? Taí outra pergunta para o Senado fazer a quem de direito. O senador anda azarado. Tempos desses foi ferido, a faca ou a bala, em circunstâncias ainda não explicadas. Agora, pungam o senador, o homem que poderia explicar, metafísica e exatorialmente, o saque fechado com o banco sem moeda.

A operação do saque fechado é difícil demais para a ministra. O leitor faça uma experiência: tente sacar depois das quatro horas, domingo à tarde. Acrescente, à essa dificuldade, o cruzado recolhido e o cruzeiro ainda por nascer. Todos os bancos fechados e a moeda ainda sem vogar. Aí vem um correntista fantasma, noite alta, feriado, e saca. Já conferiram a caixa das almas?

O Conselho de Anciãos quer que a ministra explique esse mal-assombro. Ela não é mãe-de-santo, não leva jeito de quem bate bombo, fuma charuto e chama os exus. Se o saque fechado fosse só na Bahia, estava explicado. Mas, parce, foi em todo o Brasil. O cruzado sumiu na encruza dos governos, já desencarnado, e o cruzeiro chorou na barriga da mãe! Se os Anciãos do Conselho não sabem como foi, muito menos a moça saberá. Ninguém viu, e, como dizia o poeta Ascenso Ferreira, “isso não é coisa para moça ver”.

É por essas e outras que o Brasil não vai. Somem até com a moeda que não existe, sacada dos bancos hermeticamente fechados, a chave da torneira no bolso de níqueis do presidente, e a moeda até ontem corrente se evapora! Só sendo coisas. Qual foi a alma fresca que sacou a moeda extinta, no banco fechado?

Essa molecagem vem de longe. Nos tempos da colonização, usavam os santos de pau oco para contrabandear ouro, pedras preciosas, patacões. Agora, os indiscretos Anciãos do conselho querem que a moça diga quem e quanto sacou. Ora, senhores senadores, não se perguntam números a mulheres. Elas negam até a idade. Não processem a ministra, mais ou menos 35, por tão pouco.

26/05/1990

TARDE SEM BATOM

Sobre um tema de Gonzaga Rodrigues

A moça atendia a todos sem a distância intransponível dos balcões. — Nome completo, data de nascimento, — a pergunta fazendo os da fila gente outra vez, resgatando os pálidos clones numerados nos cês-pês-efes. A moça atrás do balcão lembrava antigas moças trás os balcões, debruçadas no tempo:os olhos, os ouvidos, os passantes, os pregões, o decote ao sol, as tranças nos abismos sobre as calçadas, — reduzindo a distância fria de azulejos.

— Não precisa voltar, confirme por telefone: chame Valdenira.— Por que não você?— Porque hoje é meu último dia. As estagiárias foram dispensadas.

De repente, tudo ficou muito além do balcão. Tudo ficou inacessível, bloqueado, as moças dispensadas, o saque dos sorrisos também confiscados. Só as filas não foram confiscadas nem dispensadas. Filas mais para pagar; depositar ninguém confia e receber é pouco. Só daqui a ano e meio, à prestações, quando a inflação tiver carcomido o pé-de-meia ou o simples depósito-remunerado para poder chegar menos incompleto ao fim do mês.

O povo com o pé-de-meia furado. As moças longe dos balcões, nem so olhos atrás dos muxarabiês. Sas filas em mão única, só de pagar o devido, o haver ficou para depois. As estagiárias são um componente inflacionário; o batom, o ruge, o pó-de-arroz, são componentes inflacionários. As estagiárias são aprendizes de marajás. Eles, os marajás, também serão dispensados: 360 mil. Em um ano, daria mil demissões por dia. Mas há que ser antes, o mal se faz de uma vez. Eis o único conselho que alguns príncipes tomaram a Maquiavel.

A Caixa Econômica nunca mais será a mesma. Antes, o forte da caixa era você, — dizia o reclame. Mas você foi confiscado, bloqueado, esbulhado compulsoriamente. Até o aval do sorriso que garantia a sua espera foi dispensado atrás do balcão. As estagiárias da Caixa não passarão de ano, ontem foi seu último dia, sua última tarde remunerada.

Doravante, todos seremos párias. As reservas populares suprimidas, os sobreviventes dispensados, os estágios interrompidos. O salário mínimo será minimizado cada vez mais, ao talante da inflação e da redução negociada. A equipe econômica quer reduzir o consumo, o povo gasta o salário mínimo em supérfluos, veja-se o caso das estagiárias: usam batom e sorrisos.

É preciso suprimir todos os agentes inflacionários, todos os componentes da inflação, inclusive o sorriso, qualquer estágio do sorriso. Depois, se fará um país sério, sem sorrisos, e forte, sem consumo de qualquer espécie. Um país rico, sem poupança. O governo garante.

O sorriso das estagiárias foi dispensado como sucata administrativa. Que as filas fiquem mais amargas, sem a esperança de um sorriso ao fim da espera. O País precisa de sacrifícios; acima de escolas, de pão, de teto, de leitos hospitalares, o País precisa de mais sacrifícios, o País não pode ter poupança nem consumir, o País precisa de recessão, depressão, desemprego, jamais de sorrisos de moças ao fim das filas, — as filas do sacrifício.

Depois, quando todos forem sacrificados, se construirá um país novo, aberto ao capital estrangeiro, aberto ao endividamento externo, aos bancos externos, um país privatizado para quem tiver capital. O povo não tem capital, as estagiárias não têm batom na bolsa; os descamisados não têm o que vestir, os assalariados não têm o mínimo. Serão sacrificados. O mal se faz de uma vez, ninguém rirá por último, — nem as estagiárias, sem batom.

20/06/1990

RAPOSA DO PLANALTO

Os mísseis balísticos brasileiros ainda não alcançam a Europa, onde estão concentrados alguns de nossos credores e roedores internacionais e as seleções adversárias da Canarinha. Além, é claro, dos países do Pacto de Varsóvia, naturais inimigos do atual governo brasileiro. Os mísseis que o presidente das República disparou, dia do jogo do Brasil contra a Escócia, no campo de provas de Formosa, em Goiás, têm um alcance de 30 (trinta) quilômetros, segundo a inteligência da Rede Globo. Com um alcance tão limitado, será difícil aos mísseis brasileiros atingirem as metas adversárias nos campos europeus, — mesmo disparado pelo presidente-artilheiro.

Se os canhões de Lazaroni estão encontrando dificuldade para vencer as zagas da Suécia, Escócia e Costa Rica, disparando a poucos metros do gol, os canhões dos blindados made in Brazil jamais vencerão as barreiras dos gringos, lá em Turim, por mais pontaria que tenha o comandante-em–chefe. Os tiros do artilheiro Mello só decidiriam a Copa se os jogos fossem realizados em Brasília.

Mesmo assim, a equipe adversária poderia se retirar do campo. Bastou um foguete de sinalização para o time do Chile tirar o time, nas eliminatórias. A farsa do goleiro Rojas, punida com a pena de morte esportiva, não eximiu a multa aplicada ao Brasil pelo incidente em campo.Os mísseis e os canhões brasileiros não decidirão a Copa nem com os nossos vizinhos argentinos. Se não me traem as noções de geografia aprendidas no primário, a Itália fica no Mar mediterrâneo, a leste do Oceano Atlântico, além Tordesilhas. O chute presidencial não chega lá.

Mesmo sem mísseis de alcance internacional, são bons os carros de assalto brasileiros. Concorrem em pé de igualdade com os similares estrangeiros. Foram usados com sucesso na guerra Irã versus Iraque e, na África do Sul, se mostram de alta eficácia nos safáris contra os negros. Os canhões do seu equipamento são franceses, mas os blindados brasileiros, desenvolvidos com tecnologia e capital nacionais, ocupam a pole-position no front internacional. Tecnologia de ponta, os blindados brasileiros são diferentes, em qualidade, das “carroças” fabricadas pela indústria automobilística.

O mesmo acontece com a recente indústria aeronáutica brasileira, por sinal estatal: seus aviões são comprados, de véspera, pelas forças e empresas aéreas de outros países com tradição no setor, a exemplo da Inglaterra e dos Estados Unidos, e até copiados por fabricantes de porte, como a União Soviética. Mas o presidente Mello quer resolver a defasagem tecnológica da indústria brasileira abrindo o mercado à importação, ao mesmo tempo em que privatiza as estatais, consideradas por ele como inviáveis.

Enquanto os russos e os norte-americanos copiam, uns, e compram, outros, os produtos das estatais brasileiras, caso da Embraer; enquanto árabes e sul-africanos compram os blindados fabricados pela iniciativa privada brasileira, o presidente-artilheiro quer dar um tiro de misericórdia na indústria nacional, inspirado no gesto de Dom João VI, o Papa-Frangos, promovendo a abertura dos portos.

É de se esperar que o teste de artilharia e pilotagem, executado pela Raposa do Planalto, se não garantirem a vitória brasileira na Copa, venha, pelo menos, modificar o conceito do comandante-em-chefe sobre a indústria nacional. Ele é tão rigoroso quanto Gorbachev no controle de qualidade da prata da casa: “a União soviética produz o mais avançado foguete espacial, mas não fabrica um liquidificador que preste”, disse o presidente de todas as Rússias. É o caso do Brasil, na visão angustiada do seu presidente.

O Brasil exposta artilheiros para os melhores times da Europa. Mas, é só vestir a camisa amarela, e os mesmos artilheiros são incapazes de garantir, com tranqüilidade, uma vitória convincente sobre seleções exóticas ao futebol-arte. É preciso o presidente dar uma demonstração de força e pontaria, transmitida pela Rede Globo no dia do jogo, — um artifício conhecido no jargão da propaganda como tié-in (“laço com”, ou seja, amarrar uma coisa com outra), para empurrar o time e animar a galera, já desiludida com os canhões de Lazaroni e com o tiro pela culatra do Planocoll.

De quebra, o pó levantado pelos tiros serve de cortina de fumaça para disfarçar as dezenas de milhares de baixas no serviço público: o barnabé brasileiro foi posto no paredão de Wall Street para pagar pela dívida dos outros.

22/06/1990

O CONFISCO DO PLACAR

Querem que a causa da derrota brasileira tenha sido a presença de um homem de brinco na equipe argentina. Como anda ruim o Brasil! Ser derrotado por um homem de brinco! Se fosse na sua própria equipe, vá lá que a explicação procedesse: o time perdeu porque estava jogando com um homem de brinco. Mas o time perdeu de brinco, eis a realidade.

Para mim, o time perdeu porque Deus é brasileiro e descamisado e descalço. Deus não tem camisa amarela, ou colorida, nem chuteira para jogar. Deus é mestiço e há poucas vagas para mestiços na Seleção. A Era Pelé foi um parêntese histórico: ele, garrincha e Djalma Santos só entraram no time na raça, convocados pelo grito de Didi, o técnico dentro de campo.

O time perdeu porque Deus, brasileiro que é, não pôde ir a Turim com a poupança confiscada. Há um bom tempo que Deus não vai a campo, sequer às gerais. O preço do ingresso não permite, ainda com o time jogando em casa. Se o campo for longe, o jeito é assistir ao jogo pela TV, no botequim da esquina. E não adianta organizar torcida burguesa sem a presença, na galera, do torcedor mais importante.

O time perdeu para o Brasil ganhar. Se a seleção não voltasse pra casa, Deus iria ser demitido, ou posto em disponibilidade. Já estava pronto um pacote econômico para tirar Deus do ramo. Segundo os economistas do ministério, Deus é um agente inflacionário.Deus tem de comer menos, andar nu, a pé, não botar filhos na escola, morar debaixo da ponte Rio — Niterói. Afinal, “as raposas t~em suas covas, mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”.

O fato é que Deus, um brasileiro descalço e descamisado, torceu contra o time do governo. Se não foi, como explicar três bolas na trave, e outras tantas perdidas na boca do gol da Argentina?Como explicar o fato de a Seleção de Mello dominar 89 (oitenta e nove) minutos, o tempo todo no dancing adversário, ensinando os argentinos a dançar o tango, e não botar uma dentro? Bastou um minuto: um homem de brinco, manco e com a espinhela caída, driblou a defesa brasileira e deu o gol feito. Desmunhecado e com o mocotó trilhado, Diego Maradona acabou o carnaval. Bastou jogar um minuto.

Eu digo que Deus fez um gol contra porque Don Diego, sozinho, não faria aquilo. Ele não jogou nada durante os dois tempos, só ficou fazendo careta quando seus compadres brasileiros davam uma entrada mais forte. Don Diego estava todo desconjuntado.Ele, que já tem as juntas moles, estava com a clavícula deslocada e o mocotó desmentido. Mesmo que, durante um minuto, conseguisse jogar seu futebol, armando um gol, Don Diego não neutralizaria, como não neutralizou, o time collorido durante os restantes 89 minutos: foram três bolas na trave, outra raspou o travessão e mais duas foram cheiradas diante das redes e das câmeras! Foi um olé ou não foi?

Meu Deus confiscou o placar. Acabou com o excesso de liquidez da galera. Com bola na rede, a galera nem sente o bolso vazio. É por isso que dá tanto punguista no campo. O torcedor não sente a mão do batedor de carteira. Saciado de gol, o descamisado esquece o estômago oco. Nu, ele pensa que está vestindo a camisa amarela do time do governo que lhe dá circo e confisca o resto. Deus confiscou o placar para ver se a galera dá conta que tudo o mais lhe foi confiscado, menos o circo eletrônico da TV. Pois o circo mesmo, com as feras ao vivo, esse a galera não vê mais, os bilhetes das gerais e dos ônibus tão caros.

Deus é brasileiro e São João também. Foi o jogo acabar e os foguetões golearam os céus do Brasil.
26/06/1990

TIRO DE SAL

O time de Collor perdeu também no Tapetão. Nove a dois no Supremo, e o escore só não foi de zero porque dois ministros, nomeados pelo presidente, votaram contra a irredutibilidade de de salários dos funcionários postos em disponibilidade. Até quando o supremo tapetão terá seus ministros nomeados pelo presidente da República?

Eis uma falha da Constituição Brasileira que vem comprometer a interdependência dos Três Poderes, numa correlação desigual. O Judiciário não nomeia presidentes da República, nem o Executivo nomeia senadores e deputados. Exceção foi feita nos tempos da ditadura militar, quando os generais-presidentes nomeavam senadores biônicos, governadores e prefeitos, além dos ministros das instâncias superiores de Justiça.

Passou a ditadura mas o cacoete arbitrário permanece. Cacoete, se diga, anterior à ditadura militar. Desde constituições anteriores ao regime de arbítrio, a Justiça brasileira leva a parte do jumento na correlação de interdependência com os outros dois poderes, mormente com o Executivo, que fica com a parte do leão.Assim é, e foi, na composição dos Tribunais de Justiça dos estados, one os executivos nomeiam os desembargadores, ainda que indicados, pelos tribunais, em lista tríplice.

O fato é que não compete aos tribunais brasileiros, mesmo superiores e supremos, a renovação ou ampliação de seus quadros. E a Justiça, dessa forma, fica umbilicalmente ligada ao executivo. É o que o resultado recente de nove a dois, no Supremo, vem demonstrar: os ministros nomeados pelo presidente Collor de Mello votaram a favor do ato inconstitucional do executivo.
O abuso chega a tomar forma de nepotismo quando a nação tem conhecimento de que o último ministro nomeado é parente do presidente da república. Quer dizer: o Supremo tribunal de Justiça, no corpo de seus juízes, é transformado em cabide de empregos da família presidencial. Onde a independência para o julgamento de atos do executivo?

Veja-se o escore do penúltimo pronunciamento do Supremo Tapetão, quando foi apreciado o caso dos Tribunais regionais do Trabalho, impdidos, por medida provisória do Executivo, de decidirem sobre reajustes salariais. Na oportunidade, o corpo do supremo não contava, ainda, com os dois ministros nomeados pelo presidente da República, e o resultado foi e nove a zero. Mello e Velloso ainda não estavam escalados e, portanto, não fizeram gol contra.

Agora, o presidente perde outra vez, mas tem, a seu favor, os dois “tentos de honra” marcados por seus ministros, por ele nomeados: um primo e um amigo. Difícil será nomear os juízes da opinião pública. Esse é o derradeiro tribunal, a última instância da História. O poder terá, quando muito, a capacidade de manipular os formadores de opinião, veiculando, nos meios e comunicação de massa, as informações fabricadas por sua assessoria de marketing.

Mas a mentira, principalmente do marketing, tem perna curta: o consumidor poderá consumir, se induzido, determinado produto; mas, se o produto não corresponder às vantagens anunciadas, a frustração do mercado será inevitável, seguindo-se o refugo da marca.

É o que está acontecendo à marca mellada: o apoio popular a Collor de Mello caiu, nos primeiros cem dias de governo, de 71% (setenta e um por cento) para 36% (trinta e seis por cento), segundo o instituto de pesquisa DataFolha. No último mês, desabou 17% (dezessete por cento), à razão de mais de meio ponto ao dia. Enquanto isso, a inflação atinge, outra vez, a marca de dois dígitos; 9,61 % (nove inteiros e sessenta e um décimos por cento).

Eis a inflação que era anunciada, ainda ontem como extinta pelo tiro da espingarda-de-encher-pela-boca do presidente. Mas nem de feijão é o tiro dele, tiro de sal na barriga d’água do povo brasileiro.

29/06/1990

O PRÍNCIPE NO HORÁRIO NOBRE

Há muitas maneiras de se fazer um noticiário. Pode-se, simplesmente, agruparas notícias por ordem de interesse do público e da natureza da notícia, ou seja, do assunto a ser enfocado; pode-se escalonar os temas de maior ou de menor suspense, de acordo com o clima que se deseja emprestar ao noticiário como edição, como um todo.
Pode-se, ainda, distribuir na ordem do tempo a novidade e a continuidade, ou repercussão, do já noticiado; pode-se, também, trabalhar com o fato esgotado em profundidade, até a análise, junto ao flash sobre o que ainda é mistério, seguido da lingüiça especulativa; pode-se , enquanto forma, contrapor a plasticidade do fato rico de imagens ao fato abstrato, de expressão restrita à palavra. E pode-se, sempre, dirigir o noticiário ao talante de quem é dono da verdade, do tempo, do espaço.

Quinta-feira saiu na TV uma seqüência de notícias no melhor estilo do noticiário ideológico. Primeira notícia: o testemunho de um dirigente de saúde pública sobre as distorções na distribuição do corpo médico nas unidades assistenciais. Há médicos sobrando em algumas unidades, dizia o gerente de saúde, e há falta de médicos em postos remotos.

Ninguém quer ir para os postos avançados, deixava entender a testemunha de fé. E resgatava a mensagem tendenciosa do seu discurso: “mas, agora, temos um instrumento, — a disponibilidade”. Pronto: estava feita a cabeça do espectador sobre a urgência inquestionável do recurso da disponibilidade do funcionário público, decretado pelo governo central e suspensa, na véspera, por decisão da Suprema Corte.

Nossos comerciais, e a segunda notícia: o fim da greve na Justiça de São Paulo. Tulhas de de processos e o depoimento da angústia togada, por testemunha: “há vinte mil processos acumulados... não há tempo para o pronunciamento da Justiça... por conta disso, muitas prisões são relaxadas... vamos apreciar, prioritariamente, os casos dos presos mais perigosos!” (Corte).Quer dizer, ou quis dizer a edição da notícia: o instituto da greve põe em risco a segurança da coletividade; a greve é anti-social, antipátria, antigoverno.

Plim-plim, propaganda, e a terceira notícia: interior de uma fábrica brasileira: discurso sobre o processo de transformação e sobre a exportação do bem final; arremate com depoimento do capitão da indústria sobre a necessidade da aquisição de um insumo sofisticado, o computador, em condições de preço e de qualidade melhores do que oferece o mercado nacional.
Moral da história; urgência na extinção das reservas de mercado de alguns setores da indústria nacional, como é o caso da informática, para que a indústria brasileira possa exportar seus produtos em condições de competitividade no mercado internacional.

Só por mera coincidência, a seqüência das três notícias aborda e defende pontos de vista do governo central. Por mera coincidência ainda, a notícia seguinte: “o presidente vai receber, nos Estados Unidos, uma condecoração só concedida a personalidades do Olimpo”. E mais uma coincidência: “o presidente do instituto que vai condecorar o presidente é o poderoso chefão Rockfeler!” O “âncora” ainda insinuou um leve sorriso.

É isso aí: a disponibilidade condenada pelo Supremo é indispensável ao bem-estar público e do governo; a greve é contra o povo e o governo; as reservas de mercado, de proteção á indústria nacional, terminam por prejudicar a própria indústria brasileira, como quer o governo; e o governo vai receber condecoração de Rockfeller, um dos credores do Brasil e um dos interessados no fim das reservas de mercado brasileiras.

Coincidentemente, o pagamento da dívida externa é defendido pelo governo brasileiro. Eis o preço da condecoração: mais de cem bilhões de dólares, que é o preço da dívida, mais a lambujem, a inhapa das reservas de mercado.

Juro, pela luz de Farolito[4], que tenho pena de Maquiavel. Ele morreu sem ver TV collorida.

30/06/1990
[1]Giovani Montenegro ganhou o apelido de “Bau” quando jogava futebol. Na época, era famoso o jogador alemão Bauer, de onde veio a redução. É também conhecido como Baú Calça Velha. Foi funcionário da Companhia de Desenvolvimento da Vale do São Francisco (Codevasf), de onde foi demitido pelo golpe militar por sua militância na esquerda. Na redemocratização, foi re-admitido pela Justiça e ganhou polpuda indenização, além da aposentadoria. Como conseqüência, voltou a beber, dando baixa dos Alcoólicos Anônimos.
[2] Over night era uma operação bancária especulativa internacional, que aproveitava-se da diferença de fusos horários para fazer aplicações em regiões antípodas do planeta. Assim, o capital era aplicado duas vezes em 24 horas, de dia e de noite. NA.[3] Antes, só havia caído um avião com dinheiro: na bacia do Prata, procedente da Argentina, trazendo o dinheiro fornecido pelo capital internacional do algodão para financiar o golpe de 1930, do qual Minas Gerais era um dos sustentáculos. NA.[4] Título da coluna que o Autor manteve no jornal Correio da Paraíba, nos últimos anos da década de 1980 aos primeiros da década de 1990.