sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Banquete do Amor

Adaptação teatral do diálogo Banquete ou Do Amor de Platão.

In memoriam de Marcos Alberto Peixoto Wanderley.

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Ninguém, nenhum de vós conhece Sócrates,
mas eu vou mostrar-vos que ele é.
(Fala de Alcebíades, Banquete do Amor).




Ato único.
Cenário: pano fechado.
Luzes apagadas.

[Foco. Apolodoro entra pela porta de acesso à platéia e caminha pelo corredor entre as cadeiras. Em pós ele, a alguns passos, vem Glaucon e outro, alto, de ombros muito largos. Foco.]

Glaucon: Cabeça de Pica! Cabeça de Pica! Apolodoro, espera aí, Cabeça de Pica! [Apolodoro pára e se volta]. Há dias, caro Apolodoro, que te procuro a fim de saber os discursos sobre o amor que pronunciaram Alcibíades, Sócrates e outros, naquele banquete de Agatão. Um rapaz que os ouvira de Fênix de Felipe me falou desses discursos, e disse-me que também tu os conhecias. Mas, como ele não os soubesse direito, peço-te que nos contes.

Apolodoro: Informaram-te mal, pois pareces acreditar que tal banquete é recente e que, por isso, eu tenha participado dele.

Glaucon: É o que acho.

Apolodoro: Tu não sabes, Glaucon, que há tempos Agatão não vem aqui? E que minha convivência com Sócrates, apesar de íntima e diária, não tem três anos? Aquele banquete ocorreu quando éramos crianças. Agatão tinha sido premiado com sua primeira tragédia; ele e os atores ofereceram sacrifícios aos deuses pela vitória e, no dia seguinte, deu o banquete.

Glaucon: Já faz tanto tempo assim? Quem te contou? Foi Sócrates?

Apolodoro: Não. Quem me relatou foi Aristodemo de Kitadenas, um baixinho descalço, que participou do banquete e que era o maior admirador de Sócrates. Mais tarde, eu argüi Sócrates a respeito daqueles discursos e o filósofo me confirmou o que me contara Aristodemo.

Glaucon: Pois, enquanto vamos a Atenas, conta-me o ocorrido.
[O grupo retoma a caminhada, lentamente, pela platéia, em direção ao palco].

Apolodoro: É para mim um prazer conversar sobre filosofia. Aborrece-me a palestra dos ricos. Lamento a tua cegueira e de teus amigos.

Glaucon: És o mesmo de sempre, Apolodoro, mas não vamos brigar. Por isso, te chamam de doido. Mas, conta-nos os discursos!

Apolodoro: O baixinho Aristodemo me contou que encontrara Sócrates, recém saído do banho, e de sandálias, coisa que nunca usava. Perguntou-lhe para onde ia tão elegante, e Sócrates lhe disse que ia para um banquete na casa de Agatão.

[O grupo chega à beira do palco, dobra à direita e sai da platéia pela lateral. Sócrates e Aristodemo entram na platéia pela porta principal. Foco.]

Sócrates: Não compareci à festa da vitória, pois não me agrada estar no meio de muita gente. Mas hoje eu vou. E tu, Aristodemo, não queres ir, mesmo sem teres sido convidado?

Aristodemo: De penetra, Sócrates?

Sócrates: Acompanha-me, Aristodemo. Diz o provérbio: “Os bons vão sem convite aos banquetes dos bons”.

Aristodemo: És tu quem me convidas, Sócrates. Espero que me justifiques quando lá chegarmos.

[Sócrates pára de repente à beira do palco, (ouve-se um som de flauta,) dobra à esquerda e sai de cena pelo proscênio, e Aristodemo, sem o notar, sobe os degraus do palco, afasta o pano e entra. Pano abre.]
.
Agatão: Querido Aristodemo! Chegaste em boa hora! Vem jantar conosco!

Aristodemo: Obrigado, Agatão; eu já jantei.

[Pano sobe. Cenário: à direita do palco, grupo de homens deitados sobre almofadas, em torno de uma mesa, aguardam um jantar. Luz de lamparinas. A parte esquerda do palco fica na penumbra.].

Agatão [Foco]: Come conosco, Aristodemo! O que sobrar eu vou dar aos cães e aos escravos. Lembrei-me de convidar-te, mas não te encontrei. Estás só? Sócrates não veio contigo?

Aristodemo [Foco. Volta-se para trás]: Por Zeus, Agatão! Eu vinha com Sócrates, convidado por ele, mas o filho da parteira sumiu! Entrei crente que me acompanhava, e agora estou empulhado por não vê-lo mais. Bem sabeis que Sócrates é um grande empulhador!

Agatão [dirigindo-se a um escravo]: Moço! Procure Sócrates e traga-o para cá. [Escravo sai rápido pela direita.] E tu, querido Aristodemo, acosta-te ali, junto ao nosso médico Erixímaco. [Um escravo lava os pés de Aristodemo, antes deste se deitar. Aristodemo deita-se].

Escravo [que saíra e que volta pela esquerda]: Meu Senhor! Sócrates está parado no portão da casa vizinha, e nem sequer responde ao vosso recado!

Agatão: Incrível! Volte lá e traze-mo!

Aristodemo: Agatão, deixa Sócrates em paz. Ele tem esse costume de alhear-se e ficar meditando.

Agatão: Volta, ó rapaz; e cuida, junto com os outros escravos, de servir a todos os presentes. Faz de conta que eu sou um simples convidado. Sirvam-nos bem, para que os convivas vos louvem.

[Começam a comer. A flautista toca. Tempo.]

Agatão [A um escravo]: Rapaz, vai buscar Sócrates!

Aristodemo: Deixa-o, Agatão. Sócrates sabe o que quer e o que fazer.

Agatão: Volta, rapaz.

[Tempo. Sócrates entra pela esquerda da platéia, sobe os degraus do palco e achega-se ao banquete].

Agatão [levantando-se e abrindo os braços]: Vem, Sócrates, deita-te ao meu lado, pois quero saborear tua sabedoria!

Sócrates: [acosta-se junto a Agatão, acena para os companheiros e fala]: Seria bom, caro Agatão, se a sabedoria pudesse passar, por osmose, ao simples contato, de quem tem para quem não a tem — assim como a água passa, por um fio de lã, de uma taça cheia para outra vazia. Assim, eu me encheria de tua sabedoria, que resplandeceu ainda recentemente diante de trinta milhares de espectadores, e espectadores gregos!

Agatão: Caro Sócrates, deixemos para depois o arbítrio de nossa sabedoria. Trata de jantar.

[Os comensais continuam a jantar; quando terminam, libam o vinho, derramando uma porção no chão].

Agatão: A Ti, ó Dionísio, e a todos os deuses, agradecemos e oferecemos este fruto da vide, da verdade e da sabedoria! [Servem-se do vinho. Bebem.]

Pausânias: Regremos tudo para que possamos beber bem. Ainda estou de ressaca do banquete de ontem, e creio que todos vós também. Deliberemos, agora, como devamos beber, para que não nos acometa ressaca maior.

Aristófanes: Boa idéia, Pausânias. Cada um que beba se quiser e o que quiser. Eu sou um que ainda estou encharcado de ontem.

Erixímaco: Por meu pai, Ecumeno, médico maior das Grécias! Dissestes bem! Saibamos agora se Agatão ainda tem apetite para beber.

Agatão: Não tenho o mínimo apetite.

Erixímaco: É uma sorte para mim, Fedro, Aristodemo e outros presentes, que vós, divinos bebedores, não estejais com disposição de beber, pois nós outros, simples mortais, não poderíamos vos acompanhar. Quanto a Sócrates, concorda com tudo o que fazemos. Nos meus estudos de medicina aprendi que a embriaguez causa mal aos homens. Se dependesse de mim, jamais beberia em excesso, e aconselho o mesmo aos outros, principalmente quando ainda se está sob os efeitos de bebedeira anterior, ou seja, de ressaca.

Fedro: Sempre te obedeço como médico, ó Erixímaco; e espero que todos os presentes também, se forem ajuizados.

Erixímaco: Se é assim, neste banquete ninguém está obrigado a beber até cair; cada um pode tomar só o que quiser, sem ser constrangido pelo protocolo. E peço permissão a vós, caros amigos, para sugerir sobre o que deverão versar nossos discursos.

[Todos, em várias vozes, a um só tempo]: Apoiado, Erixímaco. Muito bem, Erixímaco. Concordo, Erixímaco.

Erixímaco: Nosso querido Fedro, aqui presente, já me chamou a atenção, várias vezes, para o fato de que se entoam hinos em louvor de todos os deuses, mas nenhum poeta ainda fez um poema em louvor de Eros. O amor não encontrou, ainda, quem o celebrasse! Fedro tem razão, e desejo louvar a Eros. Acho que todos nós deveríamos glorificar esse deus.

Todos: Apoiado!

Erixímaco: Proponho o seguinte: cada um de nós, reclinados ao derredor da mesa, começando pela direita, faça o elogio de Eros. A Fedro cabe o início, por dois motivos: ele se encontra no primeiro lugar e é o pai da idéia.

Sócrates: Caro Erixímaco, ninguém é contrário à tua sugestão. Nem eu, que pouco conheço do amor, nem Agatão, Pausânias ou Aristófanes — cuja obra se reporta a Dionísio e Afrodite. Mas, para nós, que ocupamos os últimos lugares, resta ficar calados, se os que nos antecederem esgotarem o assunto. Que Fedro comece o seu elogio de Eros!

Todos, em burburinho: Exato, Sócrates. — Começa, Fedro. — Isso!

Fedro: Eros é admirado pelos homens e pelos deuses por vários motivos, mas principalmente por não ter tido pai nem mãe e, portanto, ser o mais velho dos deuses. Nenhum poeta ou prosador afirma o contrário. Hesíodo canta: “Primeiro foi o Caos; depois a grande Terra, eterna morada dos imortais e, depois, Eros.” Isso significa que Geia e Eros nasceram logo depois do Caos.

Erixímaco: Amor tinha de nascer primeiro, pois tudo nasce de Amor.

Fedro: O mesmo cantou Parmênides, a propósito da Origem: “A Eros inventou como primeiro dos deuses”. Acusilau pensa igual a Hesíodo. Todos acordam em considerar Eros como um dos mais velhos dos deuses. Além disso, é causa dos maiores bens que recebemos, pois não existe maior bem que se possa dar a um mancebo que amá-lo virtuosamente.

Sócrates: Quer dizer, caro Fedro, que o amor é uma espécie de mestre?

Fedro: Só o amor consegue orientar os homens que desejam levar uma vida honesta. Sem isso, nem o Estado nem o cidadão poderão realizar o bem e o belo. Se um homem ama e comete ação reprovável, ou recebe injúria sem revidar, sofre mais com a reprovação da pessoa amada do que com a reprovação paterna. O mesmo acontece com o amado. Ninguém fica mais confuso quando surpreendido, em alguma falta, pela pessoa que ama.

Sócrates: Tens razão, Fedro; nada mais decepciona, ao que ama, que a decepção com o amado.

Fedro: Assim, se fosse possível fazer um Estado ou um exército composto por amantes e amados, conseguir-se-ia uma constituição política perfeita e um exército invencível — pois um soldado jamais daria lugar a que seu amante o visse desertar, nem deixaria de auxiliar a seu amado, salvando-o à morte!

Sócrates: Quer dizer, caro Fedro, que o amor é uma fonte de coragem.

Fedro: Eros inspira coragem a seus eleitos e os faz semelhantes aos que por temperamento são bravíssimos. É o que diz Homero: “O deus soprou coragem a alguns dos heróis”. É o que faz Eros aos amantes! Morrer um pelo outro, só o fazem os que amam de verdade — homens e mulheres.

Aristodemo: Dá-nos um exemplo, Fedro, dessa coragem, com teu conhecimento da história dos deuses!

Fedro: Pois sim, caro Aristodemo: É notável o caso de Alceste. Seu esposo, Admeto, estava condenado à morte. Mas poderia ser poupado se outra pessoa se oferecesse para morrer em seu lugar. Embora tivesse pai e mãe vivos, apenas sua esposa Alceste se ofereceu para morrer por ele. O amor conjugal superou, assim, o amor paterno e o materno. Esse gesto foi agradável aos deuses, que permitiram o retorno da alma de Alceste, do Hades, a sombria morada dos mortos, para o mundo dos vivos.

Aristodemo: Conheces bem a intimidade dos deuses, sábio Fedro. Brinda-nos com outro caso.

Fedro: Lembro-me do sofrimento de Orfeu. Os deuses apenas consentiram que entrevisse a sombra da mulher amada, que fora buscar. [Tempo. Na penumbra à esquerda do palco, (o que no cinema se chama split) Orfeu, com sua cítara, vislumbra sua amada no Hades]. Porque, como nada mais fosse que um tangedor de cítara, sem coragem, não soubera morrer pelo seu amor, e tentou entrar vivo nos umbrais do Hades. Enraivecidos, os deuses puniram sua covardia, fazendo com que fosse morto por mulheres! [Grupo de mulheres mata Orfeu e sai de cena levando o cadáver. Flauta.]. Como vês, Aristodemo, os deuses aprovam a coragem nascida do amor.

Aristodemo: Belo discurso, caro Fedro; dá-nos outro exemplo, belo como esse!

Fedro: Dar-te-ei outro exemplo, Aristodemo. Os deuses agraciaram, ainda, a Aquiles, a quem enviaram à ilha dos Bem-aventurados. Porque ele, mesmo advertido por sua mãe, de que morreria se matasse Heitor, ainda assim vingou seu amigo Pátroclo, morrendo sobre o corpo do amado. [Tempo. Na penumbra, Aquiles mata Heitor e, em seguida, é morto por soldados, caindo agonizante sobre o corpo de Pátroclo, que o abraça antes de morrer.]

Aristodemo: Desculpa-me, sábio Fedro, mas Ésquilo nos relata que era Aquiles quem amava a Pátroclo. Que dizes disso?

Fedro: Ésquilo se equivocou, Aristodemo. Pois Aquiles era muito mais belo do que Pátroclo, mais do que os outros heróis. E era imberbe, o mais moço de todos, segundo Homero. [Ao fim da fala, os soldados retiram os corpos de Aquiles e Pátroclo de cena]. Se é verdade que os deuses apreciam a força que brota do amor, mais admiram se é aquele que ama o que morre pelo amado. O que ama é mais divino que o amado, pois contém a divindade: é possesso de um deus.

Aristodemo: Dizes bem, Fedro. E podemos dizer que o que ama, se é capaz de conter a divindade, é porque também é divino. Nesse caso, representará a soma de duas divindades: o amante e o amado.

Fedro: Por isso os deuses agraciaram mais a Aquiles, mandando-o para a ilha dos Bem-aventurados, de que à própria Alceste, devolvendo-a ao mundo dos vivos. Encerro afirmando que Amor é o mais antigo dos deuses, o mais augusto, o mais capaz de tornar o homem virtuoso e feliz em vida e em pós a morte.
[Aplausos dos comensais.]

Agatão: Falastes bem, caro Fedro, em teu discurso a propósito de Amor, iluminando-nos com tua sabedoria. Ouçamos agora o que tem a nos dizer Pausânias, sobre o mesmo tema.

Pausânias: Percebo, caro Fedro, que não se definiu bem o tema sobre o qual devemos falar. Estabeleceu-se que fizéssemos um elogio a Eros. Acontece que há mais de um Eros e, assim, é preciso que saibamos sobre qual Eros devemos louvar. Vou tentar esclarecer essa proposta e definir qual Eros deve ser louvado como um deus faz jus.

Fedro: Muito bem, Pausânias. Esclarece-nos com tua sabedoria.

Pausânias: Vou esclarecer-te, Fedro, apesar de tua ironia. Eros e sua mãe Afrodite são inseparáveis. Se houvesse apenas uma Afrodite, haveria apenas um Amor. Mas, como há duas Afrodites, pode haver dois Eros! A mais velha das Afrodites, filha de Urano, não teve mãe. Esta Afrodite é a que chamamos também de Urânia. A mais jovem, filha de Zeus e Dione é também conhecida por Hera. A esta Afrodite chamamos de Paudemiana, a Popular.

Fedro: Sem duvidar de tua sabedoria, onde ouviste isso, ó Pausânias?

Pausânias: É o que nos relata Hesíodo. A essas duas devem corresponder um Eros celeste e um Eros vulgar. As ações não são, em si, nem boas nem más. Bela é a ação correta; feia, é a aquela ação incorreta. O mesmo podemos entender do amor, pois nem todo Eros é em si belo e admirável. Mas se mostra belo e admirável quando conduz para um amor que é belo e admirável. Assim, a Afrodite Paudemiana, a popular, filha de Zeus e Dione, é vulgar e gera o amor com o qual amam os homens inferiores.

Aristófanes: Como amam esses homens a quem chamas de inferiores, caro Pausânias?

Pausânias: Os homens inferiores amam antes de tudo as mulheres, embora amem também os mancebos. [Ménage à trois entre um homem, uma mulher e um mancebo, na penumbra.] Os homens inferiores amam mais o corpo de que o espírito, com a maior loucura, tangidos pela concupiscência. Isso causa efeitos que, por vezes, são bons; por vezes, são maus. Eis o Eros da Afrodite mais moça. Esta deusa, por ter pai e mãe, manifesta-se tanto no masculino como no feminino. Daí sua vulgaridade. [Ao fim desta fala, os três da ménage saem de cena].

Aristófanes: E como amam os amantes a quem consideras superiores, ó Pausânias?

Pausânias: Quanto ao outro Eros, é filho da Afrodite de Urano. Não teve mãe, e, portanto, não atua sobre o feminino, mas somente sobre o masculino. É o Amor dos mancebos. Ela é a Afrodite mais velha; por isso, não exagera na concupiscência. Por este motivo, os devotos deste Eros dão preferência ao sexo masculino e amam o mais forte e mais inteligente. [Casal de homossexuais masculinos, um jovem e um adulto, ama-se na penumbra.] Não amam crianças, mas adolescentes em que desponta a inteligência e os primeiros fios de barba. Esses amantes pretendem viver toda a vida com seus amados e nunca traem e abandonam os rapazes.

Erixímaco: O que poderemos fazer para melhorar as relações amorosas entre nós, caro Pausânias?

Pausânias: A lei deveria proibir que se amassem as crianças, pois nestas não se prevê o desenvolvimento das virtudes ou dos vícios. Os bons se impõem esta censura, mas os vulgares não fazem o mesmo. São estes amantes vulgares que tornam desonesto o amor. Nas regiões onde os gregos vivem sob a tirania dos bárbaros, como a Jônia, o amor aos mancebos é considerado vergonhoso. Mas isso é porque os tiranos não querem sólidas amizades entre seus súditos.

Erixímaco: Isso é o que é proibido. Mas o que é permitido?

Pausânias: Entre nós, segundo a opinião pública, é melhor amar às claras do que às escondidas, e aos mancebos mais gentis e mais virtuosos, ainda que menos belos que os outros. A mesma opinião consente que os amantes façam o que quiserem a seus amados, supliquem-lhes como mendigos, jurem como a deuses, deitem-se à porta de suas casas como cães servis.

Agatão: Tudo isso é permitido aos amantes, ó Pausânias?

Pausânias: Permitem-se todas essas extravagâncias aos amantes. E, segundo um ditado, só aos juramentos de amor os deuses permitem que sejam quebrados, pois não são juramentos. Isso prova que tanto os deuses como os homens concedem toda liberdade aos que amam. Assim, em nossa cidade, é belo tanto amar como ser amado! Mas é complexa a questão do amor entre nós. Os pais previnem-se e mandam um escravo guardião escoltar seus filhos mancebos, para evitar que falem com seus amantes [Um guardião acompanha um mancebo na penumbra.

Erixímaco: Achas, então, que o amor entre homens não deve ser aceito?

Pausânias: Não sou eu que acho. Mas seus contemporâneos, quando notam o amor se manifestar entre seus amigos, repreendem-nos; no entanto, os anciãos não censuram o amor entre os jovens. Amor não é coisa simples. Como já disse, as coisas em si não são boas nem más, mas dependem da maneira como são feitas.

Erixímaco: Achas feio amor entre amigos?

Pausânias: Feio é conceder favores a um mau e por motivos maus; belo é fazer favores a um bom, por bons motivos. O amante vulgar prefere o corpo ao espírito, por isso seu amor não é duradouro. A flor do corpo um dia murcha e, então, Amor “se vai depressa como asas”, esquecendo suas juras.

Aristófanes: Dize-nos, ó Pausânias, qual é então o caminho [soluços] a ser seguido pelos amantes.

Pausânias: Só resta um caminho: que os amantes se escravizem aos seus amados. Assim como existe outro tipo de escravidão a que ninguém se opõe, que é a escravidão à virtude. Não é vergonhoso uma pessoa entregar-se a outra porque almeja, [casal de homossexuais masculinos continua a fazer sexo na penumbra, até o fim da fala] dessa maneira, progredir na trilha da sabedoria ou de qualquer outro ramo da virtude.

Aristófanes: E qual a opinião mais sensata sobre a relação entre amantes?

Pausânias: Essas opiniões sobre o amor dos jovens e sobre a filosofia devem se unir para que se aceite o amado conceder seus favores ao amante. Quando o amante e o amado promovem-se no sentido de alcançarem a justiça e a virtude através do seu amor, é correto que se concedam favores. Nesse caso não é vergonha nem ser traído. De outra maneira, o amor é vil.

Fedro: E no caso do amor por outros interesses, caro Pausânias?

Pausânias: Se alguém se entrega a outro pensando que esta pessoa é rica e vem descobrir sua pobreza, alcança a desonra, pois tal pessoa prova que é capaz de se entregar a qualquer um só por dinheiro.

Fedro: E quando alguém se entrega a outro por suas virtudes?

Pausânias: Não se pode dizer a mesma coisa quando alguém se entrega pensando que o outro é rico de virtudes. Se vem a se enganar, sua decepção não é desonrosa, pois revela que está pronto a tentar alcançar, por meio do outro, o progresso na virtude. Assim, concluímos que é honroso entregar-se pela virtude, como quer o Eros da Afrodite celeste, filha apenas de Urano, sem mãe que a gerasse. Esse Eros é benéfico para os indivíduos e para a cidade, pois conduz amante e amado a buscarem a virtude e a sabedoria. Quanto aos outros amores, nascem da outra Afrodite, a popular. Eis aqui, caro Fedro, o meu sincero improviso sobre Amor.

[Aplausos dos comensais.]

Aristófanes, levantando-se para falar: Caro Fedro, [soluço] caro Agatão [soluço], caros [soluço] ami... [soluço], amigos. [Tempo. Soluços.] Caro Erixímaco, [soluço], livra-me, como médico, [soluço], destes soluços [soluço], ou discursa em meu [soluço] lugar [soluço] até que estes [soluço] soluços me abandonem [soluço].

Erixímaco: Tomarei as duas providências. [Aristófanes soluça] Falarei em teu lugar, e, durante a minha fala, prendes a respiração e o soluço passará [Aristófanes soluça]. Se a crise não cessar, gargarejas com água [Erixímaco soluça, seguido por mais outro comensal]. Se continuar, coça o nariz para provocar espirros: os soluços passarão, [Aristófanes soluça, seguido por outros comensais, que ora fecham o nariz com a mão, ora coçam-no, ora gargarejam], passarão por mais fortes que sejam. Depois, falarás por tua vez [Aristófanes soluça, seguido por um coro de soluços, como um coaxar de sapos. Tempo. Alguns gargarejam, outros espirram].

Aristófanes: Começa teu [soluço] discur — so, Erixí — maco, que vou seguir [soluço] tua re — ceita [soluço].

[Tempo. Os soluços gerais, em meio a gargarejos e espirros, vão diminuindo].

Erixímaco: Pausânias começou bem, mas não soube concluir seu discurso. Por isso tentarei dar um final à sua peça [soluço de algum comensal]. Foi boa a distinção que fez entre os dois Eros. Mas a minha prática de médico me tem mostrado que não é só nas almas humanas que Eros se manifesta, mas estende seu poder, ainda, sobre os animais e as plantas, enfim, sobre todos os seres [espirro de algum comensal]. Iniciarei meu discurso falando da medicina, para que minha arte também seja louvada [gargarejo de alguém].

Pausânias: Eu concluí dizendo que honroso é entregar-se pela virtude; que forma de amor conheces mais nobre do que essa?

Erixímaco: Concluíste bem, Pausânias; mas não esgotaste o assunto. É isso que pretendo fazer, baseado no teu discurso.Todos os corpos possuem os dois Eros. O que é sadio e o que é doente são dessemelhantes, e os dessemelhantes amam aquilo que lhes é dessemelhante. Assim, um Eros domina o que é doente [soluço]; o outro, o que é são. Pausânias falou bem quando disse que é certo conceder favores aos bons, e errado aos maus. A mesma coisa se aplica aos corpos: é belo apurar o que cada corpo tem de bom e são. É isso o que se chama fazer medicina [gargarejo de alguém].

Fedro: Define o que é a medicina, caro Erixímaco.

Erixímaco: A medicina, caro Fedro, é a ciência do amor nos corpos com respeito a seu equilíbrio. Aquele que provoca o surgimento do amor onde este não havia, e elimina um amor pernicioso, é um grande médico [alguém soluça]. A sabedoria do médico é provocar o entendimento entre as inimizades recíprocas existentes no corpo. Por inimizades recíprocas entendo os contrários que habitam o corpo: quente e frio, doce e amargo, seco e molhado.

Pausânias: Quer dizer, caro Erixímaco, que os dois Eros atuam sobre a medicina?

Erixímaco: A medicina está sujeita ao império de Eros, o mesmo acontecendo com a ginástica, agricultura, música. Foi o que quis dizer Heráclito: “a unidade se opõe a si mesma e consigo concorda, como a harmonia que da lira se evola.” Heráclito quis dizer que a harmonia vem de coisas que eram contrárias, como o grave e o agudo [alguém soluça], e que se uniram pela arte. A harmonia vem dos elementos opostos conciliados.

Pausânias: Queres dizer que medicina é harmonia?

Erixímaco: Sim, e assim é o ritmo: emana das notas breves e longas e que foram dispostas em concordância. Semelhante à medicina, a música estabelece concordância entre seus elementos, gerando amor entre eles. Por isso dizemos que a música é a ciência do amor em relação à harmonia e ao ritmo. Na harmonia e no ritmo, não é difícil descobrir os feitos do amor, pois na música Eros não é duplo. Mais difícil é influir nas pessoas por meio do ritmo e da harmonia, tentando fazer sábios os que são ignorantes, e despertando o seu amor, o bom amor, o Eros celestial, filho de Urânia.

Pausânias: E quanto ao amor vulgar, caríssimo Erixímaco, como devemos nos comportar?

Erixímaco: A respeito do amor vulgar, o filho de Polímnia, devemos fruí-lo com cuidado para que não se transforme exagerado e nocivo o prazer que nos dá, caro Pausânias. O mesmo se deve fazer com a arte da cozinha, sobre a qual a medicina deve manter vigilância, para que as pessoas possam desfrutar de seus prazeres sem ficar doentes [alguém vomita estrepitosamente]. Portanto, quer na música quer na medicina, assim como nas outras coisas, quer humanas, quer divinas, devemos respeitar e louvar os dois Eros, presentes em todas as coisas.

Fedro: Quer dizer, caro Erixímaco, que a natureza também recebe a influência de Eros?

Erixímaco: Até as estações sofrem a influência dos dois Eros. Se reina o Eros da ordem, harmonizando o quente e o frio, o seco e o molhado, os elementos fazem um ano bom, proporcionando saúde aos homens, aos animais e às plantas.
Mas, se o Eros anárquico estende seu domínio sobre os climas [na penumbra, efeito de gelo seco], haverá muito prejuízo, pois sua influência nefasta afeta aos animais e às plantas. O granizo, a geada, a peste, as doenças dos vegetais e dos animais nascem da desordem nas relações amorosas dos elementos naturais entre si.

Fedro: Como é o poder desse deus, caro Erixímaco?

Erixímaco: São imensos, multiformes e universais os poderes de Eros. Mas, é pelas vias da justiça e da sabedoria, nos homens ou nos deuses, que Eros manifesta o seu maior poder e nos proporciona a verdadeira felicidade, fazendo-nos capazes de conviver em sociedade e com os que nos são superiores — os deuses. Se esqueci, neste elogio de Eros, algum detalhe, cabe a ti, caro Aristófanes, dissertar sobre ele. Fala. Teus soluços já cessaram.

[Aplausos]

Aristófanes: Os meus soluços cessaram, depois de recorrer às cócegas e aos espirros. Mas surpreende-me que a harmonia do corpo necessite de cócegas e estrépitos, como os que me mandaste provocar [risos dos comensais].
Erixímaco: Caro Aristófanes! Cuidado no que dizes! O teu discurso pode provocar risos. Ficarei alerta, na espreita de ouvir o que disseres de cômico. Bem poderias falar sério.

Aristófanes: Como dizes, Erixímaco, falarei diferentemente do teu discurso e do de Pausânias. Hoje se ignora totalmente o poder de Eros. Ele, entre todos os deuses, é o maior amigo dos homens. Grande é seu auxílio, até na cura de doenças. Tentarei explicar o seu poder, mas é necessário, primeiro, conhecermos a natureza humana e as mudanças que tem sofrido. Nossa natureza já foi diferente da que é hoje.

Erixímaco: És uma prova, Aristófanes, de que nossa natureza já foi diferente. Porque os deuses não poderiam ter criado o homem irônico como tu.

Aristófanes: Antigamente a natureza humana tinha três sexos: [na penumbra, desfilam seis corpos nus, formando três duplas, postados costa contra costa: uma dupla masculina, uma dupla feminina e uma dupla formada por um homem e uma mulher, envoltos numa faixa de tule.] o sexo masculino, o feminino e um terceiro, que era a junção do masculino e do feminino, e que desapareceu, restando apenas sua denominação: andrógino. Hoje, esse nome tornou-se um insulto.

Erixímaco: Como eram mesmo essas pessoas, caro Aristófanes?

Aristófanes: Essas pessoas eram redondas, tinham quatro pernas e quatro mãos, duas faces e dois órgãos genitais. Podiam andar para frente e para trás. Havia três sexos, porque o masculino era filho de Hélios, o Sol; o feminino era filho de Geia, a Terra, e o andrógino era filho de Selene, a Lua, que faz parte tanto do Sol quanto da Terra. Por isso eram redondos, pois tinham a forma de seus genitores. E eram fortes e de grande coragem. Tanta que decidiram subir ao céu e assaltar os deuses, como nos relata Homero. Os deuses refletiram qual a punição que deveriam infligir aos homens.

Erixímaco: Essa punição foi fazer os homens parecidos contigo?

Aristófanes: Não queriam exterminá-los, pois não teriam mais quem os louvasse, nem podiam permitir que prosseguissem tão atrevidos, como demonstras, caro Erixímaco. Até que Zeus disse: “Encontrei uma forma de permitir que os homens existam, mas bem menos dotados. Serão divididos em duas metades. Ficarão só com duas pernas. Se continuarem rebeldes, faremos nova divisão e caminharão apenas sobre um pé.”

Eríximaco: E Zeus cortou os homens em dois hemisférios, como se fossem uma fruta, caro Aristófanes?

Aristófanes: Sim; Zeus cortou os homens pela metade [as faixas de tule desatam-se] e ordenou a Apolo que os sarasse [as duplas se dissolvem e ficam procurando-se na penumbra, agitando as faixas de tule, descendo até à platéia]. Assim cortadas, cada metade dos homens ficou procurando a sua cara metade. Desde então, ao se encontrarem, abraçam-se numa tentativa de se unirem outra vez para sempre.

Erixímaco: Como, então, caro Aristófanes, surgiram os homens que amam os homens, as mulheres que amam as mulheres, e aqueles que amam os do sexo oposto?

Aristófanes: Os homens, que são uma metade do que outrora eram os andróginos [na penumbra casais de homossexuais femininos, masculinos e de heterossexuais fazem sexo], são apaixonados por mulheres; eles constituem os polígamos, adúlteros, ou ursos. Assim são as mulheres originárias da outra metade dos andróginos: elas amam os homens, e constituem as adúlteras, ou chifreiras. As mulheres oriundas de uma metade do antigo gênero feminino sentem atração por mulheres, e constituem as tríbades, hetaíras, lésbicas. Já os homens que foram divididos do gênero masculino só sentem atração por outros homens. São os pederastas.

Erixímaco: E que juízo fazes, sábio Aristófanes, das pessoas que fazem sexo com seus semelhantes?

Aristófanes: Há quem diga que os homens que gostam de homens são uns perversos. Esse preconceito não tem fundamento, pois não é por concupiscência, mas por audácia e virilidade que eles amam os seus semelhantes. Uma prova é que os homossexuais masculinos, quando se tornam adultos, continuam pederastas, mas são os melhores servidores do Estado.

Erixímaco: As lésbicas também são assim?

Aristófanes: Tanto os pederastas [na penumbra casais de homossexuais femininos, masculinos e de heterossexuais continuam fazendo sexo], quanto as lésbicas, como os que são atraídos por sexos opostos, quando encontram sua cara metade, são invadidos pelo amor, e não desejam mais ser separados. Se Hefaístos, o deus dos ferreiros, os encontrasse assim unidos, e propusesse fundi-los para sempre, até em pós a morte, até o Hades, decerto eles concordariam em ser unidos outra vez, como foram outrora.

Erixímaco: Por que, caro Aristófanes, esse desejo compulsivo de união?

Aristófanes: O motivo disso é que fomos assim antigamente, duplos e unos. O desejo dessa reunificação é o que chamamos de amor. Devemos, então, ter cuidado para que não desagrademos aos deuses e sejamos divididos mais outra vez, como o perfil das figuras que ilustram as colunas.

Erixímaco: E o que podemos fazer, caro Erixímaco, para não sermos divididos outra vez, no caso, esquartejados, pois já fomos divididos em duas metades?

Aristófanes: Cuidemos para alcançar as graças de Eros, nosso deus e guia. Se lhe formos agradáveis, haveremos de encontrar nossa cara metade, felicidade rara entre os seres humanos. Que Erixímaco não pense que me dirijo a Pausânias e Agatão: talvez eles pertençam a esses poucos bem-aventurados e sejam, por natureza, masculinos. Quero falar de todos os homens e mulheres: a humanidade seria feliz se cada um se dedicasse a encontrar sua metade, o seu amor, retornando ao nosso antigo estado primitivo.

Erixímaco: Nada tenho a ver com a vida particular de ninguém, caro Aristófanes.

Aristófanes: A Eros, que nos provê da felicidade do reencontro e da complementação de nosso ser, louvemos com ardor e gratidão! É ele que nos dá o maior de todos os bens e nos alenta com esperanças. Caso sejamos piedosos, Eros nos devolverá ao antigo estado primitivo e natural, nos curará de todos os males e nos conduzirá à felicidade. Eis aqui, caro Erixímaco, o meu elogio de Eros, diferente do teu discurso. Não o ridicularizes. Agora, vamos ouvir os elogios que ainda faltam ser feitos: o discurso de Agatão e o de Sócrates.

[Aplausos].

Erixímaco: O teu discurso me agradou, querido Aristófanes. Se não conhecesse o talento de Agatão e Sócrates na arte do amor, temeria pela falta de assunto para os seus elogios, porque praticamente já se esgotou o tema de Eros. Mas confio nos seus talentos.

Sócrates: Saíste bem, caro Erixímaco. Mas se te achasses na minha situação, depois que Agatão fizer seu discurso, sentir-te-ias encabulado, como agora me sinto.

Agatão: Queres me envenenar, caro Sócrates, queres que eu me embarace com a expectativa de que nossos amigos estão ansiosos, esperando ouvir o que irei dizer?

Sócrates: Eu não teria memória, caro Agatão, se não me lembrasse que te vi subir ao tablado com tanto desembaraço, junto com os atores, e enfrentar com segurança aquela formidável assistência, e pronunciar o prólogo de tua tragédia. Depois daquilo, não te intimidarás diante de um pequeno auditório!

Agatão: Caro Sócrates, sei que a um homem de bom senso a opinião de uns poucos, mas sábios, infunde mais respeito de a de muitos ignorantes.

Sócrates: Eu seria um leviano se fizesse tal juízo a teu respeito! Sei que se encontrasses um pequeno grupo de sábios, haverias de respeitá-los mais de que à multidão. Acontece que nós não somos sábios, pois estivemos no teatro como parte da multidão. Mas, se te achasses no meio de sábios, não terias vergonha, se cometesses uma ação indigna?
Agatão: Claro que sim.

Sócrates: E não tremerias diante da plebe, se ela testemunhasse um ato vergonhoso teu?

Fedro: Caro Agatão! Se continuas a responder às perguntas de Sócrates, não pronunciarás o teu discurso. Sócrates se esquecerá do que se passa ao seu redor, pois nada lhe satisfaz tanto como dialogar com um belo mancebo. Claro que sinto prazer em conversar com Sócrates, mas agora me cabe o dever de cuidar dos elogios a Eros e recolher de cada um de nós o seu panegírico. Trata, pois, Agatão, de fazeres teu louvou ao deus, e depois conversarás com Sócrates.

Agatão: Nada me impedirá de fazer meu elogio a Eros. Quanto a Sócrates, conversarei com ele noutras oportunidades. Antes, porém, quero definir o modo de como farei meu discurso. Pois até agora nenhum de vós fez um elogio ao deus, mas se limitaram a chamar de felizes as pessoas a quem Eros concede suas graças. Todos sabemos que só existe um modo de se fazer um louvor a quem quer que seja: mostrar quem é o autor e, em seguida demonstrar suas obras. É o que me parece que deve seu feito no caso de Eros: louvá-lo, em primeiro lugar, a si mesmo, e só depois citar os dons que nos dá.

Fedro: Pois mostra-nos, caro Agatão, o que só tu sabes demonstrar a respeito de Eros. Que o deus que te inspira nos teus poemas, te inspire também no teu elogio.
Agatão: Sim, caro Fedro. Eros não me deixará em silêncio, mas guiará minha palavra no rumo da felicidade. Todos os deuses são felizes. Mas Eros é o mais feliz, o mais belo e o melhor de todos eles. É o mais belo por ser o mais jovem dos deuses. Ou seja, apesar de ser o mais antigo, é o que melhor preserva sua juventude, pois sempre evita ser alcançado pela veloz velhice, que nos alcança mais depressa que desejaríamos. Por sua natureza, Eros odeia a velhice e não permite sua aproximação. Sempre jovem, mantém-se próximo dos que são jovens, conforme um antigo provérbio: “o semelhante procura o semelhante”.

Fedro: Então, ele é o mais velho ou o mais jovem?

Agatão: Defendo que Eros é o mais jovem dos deuses, e que sua juventude é eterna. Eros é jovem e delicado. Só um poeta como Homero poderia descrever a delicadeza de Eros. O mesmo Homero que diz que Atê, a deusa da sedução, se destaca por ser uma divindade delicada, e assim canta: “Os seus pés são delicados, pois não se apóiam no solo, mas andam sobre a cabeça dos homens”. Nenhuma expressão mais sutil poderia sugerir tanta suavidade, quanto essa de dizer que ela anda não sobre o que é duro, mas por sobre o que é mole. Podemos dizer o mesmo em respeito a Eros, para demonstrar sua delicadeza.

Fedro: Mas as cabeças não são tão moles assim. Há pessoas de cabeças duras, tanto ou mais que a cabeça de um carneiro.

Agatão: Nosso deus não caminha sobre a terra, nem sobre as cabeças. Ele caminha e repousa sobre as coisas mais suaves que existem e, aí, faz sua morada [Na penumbra, Eros aproxima casais de amantes]. Constrói sua casa nas almas e nos corações dos deuses e dos homens.

Aristófanes: Disseste bem, Agatão. És, realmente, um poeta.

Agatão: Poeta é aquele que ouve bem como tu, Aristófanes. Mas, se Eros toca com o pé o que há de mais tênue neste e no outro mundo, será, portanto, o mais delicado dos deuses. Eu disse que é o mais jovem e o mais delicado. Direi, também, que é o mais ágil. Pois, se não o fosse, nunca poderia alcançar todas as almas e nelas infiltrar-se sem se fazer notado. O fato de viver entre flores sugere como será bela a cor de sua tez [Eros aparece na penumbra, entre flores que lhes caem sobre o corpo. Tempo. Sai de cena.]. Eros não se demora em coisas que não sejam floridas. Mas, se houver flores e perfumes, aí demorará. Agora falemos das suas virtudes. Amor não acata injúrias nem dos homens nem dos deuses; nem ofende aos homens nem aos deuses.

Erixímaco: Explica-nos, caro Agatão, como Eros, o deus do amor, da felicidade e da bondade, muitas vezes nos faz sofrer?

Agatão: Se ele sofre, ou faz sofrer, é sob constrangimento, pois a violência é a contradição do amor. Todo acordo espontâneo é tido como justo pelas leis, as “rainhas do Estado”. Além de ser o mais justo, Eros é o que tem mais temperança entre os deuses. Ter temperança é dominar os prazeres. E o amor é o maior de todos os prazeres. Sendo assim, todos os outros prazeres têm menos força que o amor e são facilmente vencidos por Eros. Ele é, também, o mais valente dos deuses, pois prendeu Ares [Na penumbra, Eros joga uma rede de malha sobre Ares e Afrodite, deitados, fazendo sexo. Na fala seguinte, figurantes retiram-lhes de cena.], deus da guerra, na cama em que ele adulterava com Afrodite, mãe de Eros e esposa de Hefaístos, o deus ferreiro.

Pausânias: Quer dizer, caro Agatão, que Eros é um filho da puta?

Agatão: Ninguém é culpado da sua origem, nem pode ser condenado pelas faltas de seu pai ou de sua mãe, caro Pausânias. Aliás, não é bom falar nessa questão de quem é ou não é filho da puta, pois atiraríamos pedras na mãe de muita gente ilustre. Já falei da justiça, da temperança e da coragem de Eros. Agora, falarei de sua sabedoria.

Fedro: Fala-nos também de tua arte em relação a Eros, caro Agatão, pois é agradável ouvir um poeta falar de poesia.

Agatão: Como Erixímaco fêz com a medicina, honrarei também minha arte. Eros é tão magnífico poeta que pode fazer poetas aqueles aos quais ama. E é por isso que mesmo aqueles mais prosaicos se tornam poetas quando Eros os envolve. Assim, Eros é um grande criador em relação às musas, pois é impossível alguém dar ou transmitir o que não sabe. Ninguém será capaz de negar que tudo quanto existe é originário de Eros, de sua sabedoria e de seu amor, por causa de quem tudo se reproduz.

Fedro: Queres dizer que todos podem ser poetas, se tocados pala inspiração de Eros?

Agatão: Poetas e artistas. Nas artes, todos aqueles a quem Eros inspira tornam-se notáveis criadores. Mesmo Apolo, que inventou o arco, a medicina e a adivinhação, é um discípulo de Eros, pois fez tudo isso impelido pelo sopro do amor. Da mesma forma agiram as musas, inventoras da música; e Hefaístos, seu pai, criador da arte do ferreiro; e até Zeus aprendeu com Eros a arte de governar os homens e os deuses. As brigas entre os deuses só cessaram quando o amor apareceu entre eles [Eros reaparece na penumbra, apaziguando os deuses, que brigavam. A cena prossegue até a fala seguinte de Agatão.]

Erixímaco: Quem provocava as desavenças entre os deuses, caro Agatão?

Agatão: Outrora os deuses viviam sob o império de Anankê, a Necessidade, e muitas crueldades e truculências foram praticadas entre eles. Mas, após o nascimento de Eros, a realidade se transformou e o amor se estabeleceu entre os deuses e os homens, decorrendo daí muita felicidade. Como disse o poeta, Eros é quem propicia “paz aos homens, calma ao mar, silêncio aos ventos, cama e sono para a dor”.

Erixímaco: Repete esse último passo, caro Agatão.

Agatão: Como disse o poeta, Eros é quem propicia “paz aos homens, calma ao mar, silêncio aos ventos, cama e sono para a dor”. É esse deus quem nos tira da solidão, que aproxima os homens, que une a sociedade. É quem inspira nossas danças, alegra nossas festas, estimula a doçura e dissipa a ferocidade.

Fedro: Eros é o deus da felicidade, Agatão, pois é o deus que nos faz felizes.

Agatão: Exatamente, caro Fedro. Onde Eros chega reina a doçura. É pródigo de bondade, admirado pelos sábios, agradável aos deuses. Desejado pelos que ainda não o possuem, valioso tesouro para os que já o possuem. É o pai das riquezas, das delícias, dos encantos, dos doces desejos e das paixões. É a glória dos deuses e guia dos homens. Eis, caro Fedro, o elogio que pude fazer de Eros, com sua divina inspiração e ajuda.

Todos: [Aplauso geral, exclamando]: Bravo! Belíssimo!

Sócrates: E agora, o que dizes, caro Erixímaco, filho de Ecúmeno? Estás convencido de que tinha fundamento o meu temor de que Agatão falaria tão bem, a ponto de me deixar sem assunto?

Erixímaco: Que Agatão falou bem, concordo; mas que te deixou sem assunto, não acredito.

Sócrates: De que maneira, meu feliz amigo, eu não estaria inibido, ou qualquer outro que tivesse de falar depois de um discurso tão elegante e sábio? Principalmente sua parte final, de rara beleza? Quem não se sentiu maravilhado com a poesia de suas palavras? Reconheço-me incapacitado de fazer um discurso após tão belo elogio. E desapareceria daqui, se fosse possível. Agora sei quanto fui tolo em concordar convosco que, um após outro, cada um fizéssemos um elogio a Eros, cabendo-me encerrar a série de discursos. Logo eu, que não sei louvar ninguém.

Fedro: Sabes falar sobre todos os assuntos, Sócrates. Deixa de falsa modéstia.

Sócrates: Não sei falar sobre tudo, caro Fedro. Apenas persigo a verdade. Eu acreditava que dizer a verdade sobre o objeto do elogio era suficiente para se fazer um bom discurso. Porém vejo agora que essa não é a maneira de se fazer um elogio e que se deve atribuir ao objeto os maiores predicados, sem se considerar que isso seja verdade.

Fedro: E onde fica a verdade?

Sócrates: No elogio, verdade e falsidade não têm qualquer importância. No nosso caso, o que se decidiu parece que foi fingir que cada qual elogiava a Eros. Mas isso não é um elogio verdadeiro. Por isso, usastes da eloqüência e louvastes a Eros, atribuindo a ele as maiores virtudes e causa da felicidade dos homens, dizendo que é o mais belo e generoso dos deuses.

Erixímaco: Então faz um elogio verdadeiro a Eros, já que és íntimo da verdade.

Sócrates: Não sou íntimo da verdade, como ironizas, caro Erixímaco. Apenas sou seu faminto, porque não a tenho, mas a quero mais do que tudo. Eu não conhecia esse método de elogiar. E foi por desconhecê-lo que concordei em participar desse simpósio sobre o amor, fazendo um panegírico de Eros quando chegasse minha vez, depois de todos vós terdes falado. Não louvarei esse deus dessa maneira. Mas, se o quiserdes, falarei à minha maneira, dizendo tão somente a verdade, sem disputar convosco quanto à eloqüência.

Alguém: Fala, Sócrates, como quiseres.

Sócrates: Permite, então, caro Fedro, que eu dirija algumas questões a Agatão, para que eu possa falar com mais segurança.

Agatão: Pergunta o que quiseres, Sócrates.

Sócrates: Caro Agatão, começaste bem o teu discurso, quando afirmaste que era necessário definir qual a natureza de Eros e, somente após, falar de suas obras. Explicastes bem o que ele é e seus efeitos. Quero te fazer uma pergunta: Eros é amado por alguém ou alguma coisa? Não te pergunto se ele é amor de um pai ou de uma mãe, pois essa pergunta seria ridícula. Mas a minha pergunta é: o pai é pai de alguém? Se quisesses responder corretamente, dirias: o pai é pai de um filho ou de uma filha. Não é assim?

Agatão: Perfeitamente, caro Sócrates.

Sócrates: Responde-me ainda: o irmão é ou não irmão de alguém?

Agatão: É claro que sim.

Sócrates: Agora, responde-me sobre Eros, se é amor de alguma coisa ou se não é.

Agatão: Claro que é.

Sócrates: Se o forte quisesse ser forte, o veloz quisesse ser veloz e o saudável quisesse ser saudável, alguém poderia pensar que os possuidores dessas virtudes desejam possuir o que já possuem. É para não cair nessa ilusão, caro Agatão, que afirmo: cada uma dessas pessoas deve possuir o que possui, sendo indiferente o seu desejo a respeito do que possui. Pois, se alguém afirmasse: “eu, que sou rico, quero ser rico”, deveríamos responder-lhe: “Tu, que já possuis a riqueza, o que desejas é continuar possuindo a riqueza no futuro, pois que já a possuis neste momento. Essa pessoa concordaria conosco, não é certo?

Agatão: Perfeitamente, caro Sócrates.

Sócrates: E desejar que aquilo o qual possuímos no momento também possuamos no futuro não é o mesmo que desejar algo que ainda não se acha ao nosso dispor?

Agatão: Sem sombra de dúvida, meu sábio Sócrates.

Sócrates: Assim, essa pessoa deseja aquilo que não está ao seu dispor e que lhe falta. Não são esses os objetos do amor e do desejo?

Agatão: Tens razão, Sócrates.

Sócrates: Agora examinemos o que dissemos antes. Não ficou claro que Eros é, em primeiro lugar, amor a determinados objetos e aos que lhe faltam?

Agatão: Concordo contigo.

Sócrates: Tu disseste que a paz havia reinado entre os deuses graças ao amor do belo, pois não existe amor do feio. Não foi?

Agatão: É como dizes.

Sócrates: Não acordamos que só se ama o que não se tem?

Agatão: Foi a que chegamos.

Sócrates: Então, diríeis que é bonito aquilo a que falta beleza?

Agatão: Jamais!

Sócrates: Então, ainda afirmas que Eros é belo?

Agatão: Agora mais não. E reconheço que falei como um ignorante em tudo aquilo que disse.

Sócrates: No entanto, caro Agatão, fizeste um belo discurso! Permite-me mais uma pergunta: o que é belo também é bom?

Agatão: É o que penso.

Sócrates: Se a Eros falta beleza e se o belo é bom, emerge que a Eros falta bondade.

Agatão: Ninguém será capaz, Sócrates, de te contradizer.

Sócrates: Contradizer a Sócrates não é impossível. Ninguém pode, caro Agatão, é contradizer a verdade. Vou dar por concluída esta nossa discussão, para reproduzir um discurso sobre Eros que outrora ouvi de Diotina, mulher nascida na Mantinéia. Era mulher sábia em muitas coisas. Devo-lhe o que sei sobre o amor.

Agatão: Sábio Sócrates, só tu podes nos explicar a natureza e os atributos de Eros. Não nos prives disso.

Sócrates: Caro Agatão, disseste que devemos primeiro explicar a natureza e os atributos de Eros. O método mais prático de abordar essas questões me parece ser o de que se valeu Diotina comigo: o método interrogativo. O meu diálogo com a Estrangeira foi parecido com o de Agatão comigo. Eu dissera à Estrangeira que Eros me parecia ser um deus dos mais belos que existem, e ela me demonstrou o contrário. A nossa conversa foi mais ou menos nestes termos:

Sócrates: Então dizes, Diotina [a Estrangeira aparece na penumbra], que Eros é feio e mau?

Diotina: Queres blasfemar? Achas que aquilo que não é belo deve ser feio?

Sócrates: Sem querer blasfemar, acho que sim.

Diotina: E o que não é sábio deve ser tolo? Julgas que não há um meio-termo entre a tolice e a sabedoria?

Sócrates: Assim penso, cara Diotina.

Diotina: Não achas que afirmar sem dar justificação não é saber, pois não se pode saber algo que não se possa demonstrar? Mas que isso não é tolice, pois não se pode considerar tolice o que alcança o real? Minha opinião é a seguinte: a opinião correta é a que está entre o conhecimento real e a tolice.

Sócrates: Concordo contigo.

Diotina: Deves evitar ainda de concluir que aquilo que não é belo é feio, e aquilo que não é bom, é mau. Concordas que Eros não é belo nem bom, mas não demonstraste porque ele é feio e mau. Deve haver um ponto de equilíbrio entre esses extremos.

Sócrates: Querida Diotina, todos concordam que ele é um grande deus!

Diotina: O que queres dizer com “toda gente”? Todos os sábios, ou todos os tolos?

Sócrates: Todas as pessoas, tanto os sábios quanto os tolos.

Diotina: Como então, caro Sócrates, poderão acreditar que Eros é um grande e belo deus justamente pessoas que dizem que Eros não é deus?

Sócrates: Quais são essas pessoas?

Diotina: Uma és tu; outra sou eu...

Sócrates: Como podes dizer isso?

Diotina: Elementar, caro Sócrates. Responde-me: Não dizes que os deuses são felizes e belos? Ousas dizer que algum dos deuses não é belo e feliz?

Sócrates: Jamais, por Zeus!

Diotina: E quais são os felizes? Os que possuem o que é belo e bom?

Sócrates: Perfeitamente.

Diotina: E quanto a Eros, concordas que, por lhe faltar o que é belo e bom, ele almeja essas coisas?

Sócrates: Já te afirmei positivamente.

Diotina: E como ele pode ser deus, se não é bom, nem belo?

Sócrates: Tens razão.

Diotina: Concordas, agora, que não consideras Eros como um deus?

Sócrates: E o que é Eros? Um homem mortal?

Diotina: Algo como aquilo que nos referimos: um meio-termo. Um meio-termo entre mortal e imortal. Um gênio, caro Sócrates. Pois todos os gênios estão entre o ser deus e o ser mortal.

Sócrates: E que poder possuem os gênios?

Diotina: Os gênios estabelecem a ligação entre os deuses e os homens e entre os homens e os deuses. Preenchem o vazio que há entre uns e outros. Unem o Todo a si mesmo. Graças aos gênios, existe a adivinhação, a arte dos sacerdotes, os sacrifícios, as fórmulas sagradas, as encantações, as profecias, as magias. Um deus não se aproxima de um homem. Todas as comunicações entre os deuses e os homens são feitas por intermédio dos gênios. O homem a quem são feitas essas comunicações é um homem inspirado. Há muitos gênios. Eros é um deles.

Sócrates: Mas qual sua origem? Quem é seu pai e sua mãe?

Diotina: Isso é uma longa história. Vou contar-te: Quando Afrodite nasceu, houve um grande banquete, ao qual compareceu Poros, o Esperto, filho de Métis, a Prudência. Durante o banquete, Penia, a Pobreza, chegou à porta para mendigar as sobras da festa [Penia senta-se à porta de entrada do palco]. Poros embriagou-se pelo néctar — pois ainda não havia o vinho — e se deitou nos jardins de Zeus, [Poros senta-se na penumbnra e adormece] ali adormecendo. Penia, a Pobreza, quis ter um filho de Poros, e deitou-se ao seu lado [Penia vem e deita-se ao lado de Poros, dando início a prelúdios amorosos com ele]. Assim foi concebido Eros. Por ter sido concebido no mesmo dia em que Afrodite nasceu, Eros tornou-se seu companheiro e servidor.

Sócrates: Acreditas, Diotina, que Eros não é filho de Afrodite?

Diotina: Sim, caro Sócrates. Por ser filho de Poros e Penia, Eros tem o destino de ser pobre, e não é delicado nem belo, como todos pensam. Ele é rude, sujo, descalço, não tem casa, dorme no chão, junto às portas [Poros deita-se e adormece junto à porta do palco]. Nisso, herdou a natureza da mãe, que é miserável. Mas, por herança do pai, Eros sente-se atraído por tudo que é belo.

Sócrates: Essa é a sua perdição.

Diotina: Eros é valente e audacioso, grande caçador. Está sempre à procura de conhecimentos, é um sofista e grande feiticeiro. Não é imortal nem exatamente um mortal. No mesmo dia, pode morrer e renascer. Os resultados de sua esperteza vêm às suas mãos. Por isso, nunca está na miséria, nem tampouco na riqueza. Oscila entre a sabedoria e a tolice. Como os deuses não filosofam, porque já são sábios, e quem já é sábio não filosofa, os tolos também não filosofam nem desejam ser sábios. Esse é o maior defeito dos tolos: em considerar-se perfeitos. E quem se considera completo e suficiente, não deseja o que não pode notar que lhe falta.

Sócrates: Estou curioso, Diotina, em saber quem filosofa, já que não o fazem nem os tolos nem os sábios.

Diotina: Filosofam aqueles que estão situados entre os sábios e os tolos. Eros faz parte desse meio-termo. A sabedoria é uma das coisas mais belas, e Eros tem como objeto de seu amor justamente o que é belo. Por isso, é um filósofo e, como tal, está situado entre os sábios e os tolos. Isso vem de sua origem: é filho de pai sábio e de mãe ignorante. Eis, caro Sócrates, a natureza desse gênio. Erraste na imagem que fizeste dele, pois parece que consideraste Eros o objeto amado, e não o sujeito que ama. Por isso Eros te pareceu infinitamente belo. Realmente, o objeto do amor é belo, perfeito e, por isso, feliz. Mas não é o caso daquele que ama, como te demonstrei.

Sócrates: É bem provável, Diotina, que seja assim. Mas o que esse Eros dá aos homens?

Diotina: Vou tentar dizer-te, caro Sócrates. Eros tem a origem que acabei de explicar e tu admitiste que ele é o amor do belo. Mas alguém poderá perguntar: “Demonstrai-me, Sócrates e Diotina, o que vem a ser o amor do belo!” Ou, como eu diria: o que pretende quem ama o belo?

Sócrates: Deseja, se não me engano, possuir o belo.

Diotina: E o que possuirá quem possui o belo?

Sócrates: Reconheço que não sei responder a essa pergunta.

Diotina: Porém, se alguém em vez de “belo” disser “bom”, e te perguntar: “caro Sócrates, o que deseja quem ama o que é bom?” O que responderás?

Sócrates: Que quer sua posse!

Diotina: E o que é que tem quem possui o bom?

Sócrates: Eu digo que esta pessoa se sentirá feliz.

Diotina: Perfeito, caro Sócrates. É pela posse do bom que os felizes são felizes. E não mais é preciso perguntar, nem mesmo questionar quem deseja ser feliz, ou porque o deseja. Essa resposta encerra a nossa discussão.

Sócrates: Exatamente, cara Diotina.

Diotina: Mas, esse desejo e esse amor não são comuns a todos os homens? Não achas que todos desejam possuir aquilo que é bom? Já dizia o poeta Ignácio de Catingueira:

“Há dez coisas neste mundo
que todo mundo procura:
É dinheiro, é bondade,
Água fria e formosura,
Cavalo bom e mulher,
Requeijão com rapadura,
Morar sem ser agregado,
Comer carne com gordura!”

Sócrates: Certo é, Diotina, que esses são sentimentos comuns a todos os homens, como diz o grande vate bárbaro de Catingueira!

Diotina: Então, caro Sócrates, por que não afirmamos logo que todas as pessoas amam, uma vez que todo mundo deseja a mesma coisa? E por que afirmamos que apenas uns poucos amam?

Sócrates: Isso me causa espanto. Não sei!

Diotina: A dificuldade nasce, porque aplicamos a uma espécie de amor o nome do gênero. Para as outras espécies, damos nomes diferentes.

Sócrates: Dá-me um exemplo.

Diotina: Sabes que “poesia” é um conceito vário. Poesia é tudo aquilo que passa da não existência para a existência. Poesia vem a ser as criações que se produzem nas artes. E poeta é o artista que realiza essas criações.

Sócrates: Estou de acordo contigo.

Diotina: Esses homens são chamados “poetas”, mas também lhes dão outras denominações. E de todas as criações artísticas apenas uma parte é chamada de “poesia”, justamente a música e os versos, e somente a ela se dá o nome que define o todo. Só esta arte e seus artistas são chamados de poesia e de poetas!

Sócrates: Como dizes bem, Diotina! Dizes novamente!

Diotina: De todas as criações artísticas apenas uma parte é chamada de “poesia”, isto é, a música e os versos, e somente a ela se dá o nome que define o todo. Só esta arte e seus artistas são chamados de “poesia” e de “poetas”, embora as outras artes também sejam “poesia” e os outros artistas também sejam “poetas”.

Sócrates: Como dizes bem, Diotina!

Diotina: A mesma coisa se dá com o amor: o desejo do belo, do bem e da felicidade, é o que para todo mundo consiste a astúcia de Eros. Mas há muitas maneiras de se satisfazer o amor, como sejam: buscar as riquezas, praticar os esportes, procurar a filosofia. Essas são situações e coisas a que não se aplicam os nomes de amante e amado. Apenas a uma espécie de amor e aos seus seguidores é que se dá o nome do gênero: amor, amar, amante, amado...

Sócrates: Como dizes bem, belíssima Diotina!

Diotina: Diz uma lenda que aqueles que amam apenas procuram sua cara metade, pois que um dia foram divididos pelos deuses, como castigo por sua audácia. Mas eu creio que amar não é buscar nem a metade nem o todo, se isso não for bom. Pois as pessoas permitem que se lhes amputem as mãos e os pés, quando esses estão maus. Acredito que ninguém ame o que é seu só pelo fato de que é seu. Assim, todos diriam que o que é bom é o que é seu, inclusive seus parentes maus, que lhes causam vergonha e desgosto. E chamariam de mau a todo o alheio! Mas as pessoas amam apenas o que lhes parece bom. É assim que pensas?

Sócrates: Penso como tu, Diotina, e quereria poder dizer bem como tu!

Diotina: Então, caro Sócrates, se o amor é a procura do bom, de que maneira devem praticá-lo os que buscam o que é bom, a fim de que seu esforço receba o nome de amor? Qual será essa atividade? Sabes dizer-me?

Sócrates: Se eu soubesse, querida Diotina, não viria incomodar-te para aprender exatamente isso.

Diotina: Pois vou dizer-te: é a criação do belo, segundo o corpo e o espírito.

Sócrates: Faze-me uma demonstração para explicar-me o que dizes.

Diotina: Vou tentar falar mais claro. Todos as pessoas, caro Sócrates, desejam procriar segundo o corpo e o espírito. Quando chegamos a certa idade, a natureza nos conduz à procriação [casal de jovens procura-se na penumbra]. Nesse ato há qualquer coisa de divino. A procriação e o nascimento são momentos imortais num ser mortal! Mas esse ato não se realiza na desarmonia. O feio está em desarmonia com o que é divino, ao contrário do belo. Assim, quem deseja procriar, sente aumentar o desejo quando se aproxima do belo [casal de jovens encontra-se e bolina-se na penumbra]. Concebe e dá a luz. Mas, quando se aproxima do feio, abstém-se e não procria. É por isso que amam a beleza todos os que anseiam procriar. Pois o amor não é, como podes pensar, o desejo do que é belo!

Sócrates: E o que é o amor, sábia Diotina? Ensina-me este grande mistério!

Diotina: O amor é o desejo de procriação no belo.

Sócrates: Quiçabe.

Diotina: Não quiçabe, nem talvez, mas com certeza, sim. Sabes qual a importância do ato de procriar? [Casal de jovens faz sexo na penumbra.] É que ele significa algo que perdura. É, para o mortal, a imortalidade. Segundo já acordamos, o desejo da imortalidade não se separa do desejo do bem, pois o amor resume-se na posse perene do bem, de onde resulta que o amor é o desejo de imortalidade.

Sócrates: Repete-me esta última frase, Diotina, para que eu não a esqueça jamais!

Diotina: O amor é o desejo da imortalidade [tempo].

Sócrates [dirigindo-se aos seus pares do simpósio]: Tudo isso, amigos, ouvi dos lábios dessa mulher estrangeira, uma das maiores fontes de sabedoria que tive a felicidade de conhecer. Um dia, ela perguntou-me:

Diotina [na penumbra]: Qual será, querido Sócrates, a causa do amor? Já percebestes que o amor anima todos os animais, tanto os do céu como os da terra, quando são tomados pelo desejo de procriar? Já notaste como se tornam incendiados pelo amor, no momento de se unirem e depois, no zelo de suas crias? Já reparaste como enfrentam animais de maior porte na defesa de sua prole? Se fossem homens, poderíamos dizer que é a razão que os conduz a agir assim. Mas trata-se de animais. A que atribuiremos o amor que neles se manifesta?

Sócrates: Confesso que não sei, cara Diotina.

Diotina: Jamais serás um entendido no amor, se não souberes isso.

Sócrates: Mas é por isso que procuro a tua pessoa, bela e sábia Diotina, para ouvir tua sabedoria.

Diotina: Grata, querido Sócrates, pelo estímulo. Não é todo dia que uma mulher bárbara pode ser ouvida por um grego culto. No caso dos animais, caro Sócrates, também é a natureza mortal que procura eternizar-se por meio do amor. Isso no caso da procriação, caro Sócrates, em que o amor permite a substituição de um indivíduo velho por um novo. É a renovação, a mudança em busca da eternidade. Entretanto, mesmo no tempo de vida de um animal, ele também muda constantemente. Ele está continuamente a renovar-se, pois a perda dos cabelos, da carne, é também uma forma de renovação.

Sócrates: Essas transformações também ocorrem no espírito, cara Diotina?

Diotina: No espírito também ocorrem essas mudanças. Convicções, costumes, desejos, prazeres, simpatias, aversões, temores, esses sentimentos não permanecem os mesmos. Nossos próprios conhecimentos ora nascem, ora morrem. Não somos idênticos a nós mesmos, ao longo de nossa vida, nem quanto aos nossos conhecimentos. O esquecimento é a fuga de um conhecimento. E a reflexão é a tentativa de se fixar um conhecimento que se evola.

Sócrates: Assim como as pessoas se transformam tanto fisicamente como espiritualmente, cara Diotina, os deuses também mudam?

Diotina: Caro Sócrates, por meio das transformações e substituições é que se preserva tudo que é mortal. O mesmo não ocorre com o divino, pois este se conserva sempre o mesmo. A permanência da identidade é uma prerrogativa dos deuses. É dessa forma, caro Sócrates, que os mortais participam da imortalidade. Não te espantes dos seres amarem as suas crias, pois é por causa do desejo da imortalidade que amam e se desvelam pelo que criaram.

Sócrates: Acho maravilhoso tudo o que acabas de dizer, ó Diotina, a mais sábia dentre as mulheres, e dentre as vozes que já ouvi.

Diotina: O móvel que anima todas as pessoas em busca da fama, da glória ou do sacrifício da morte voluntária, é esse desejo de imortalidade, caro Sócrates. Todos os que se sacrificaram fizeram-no com a certeza de que sua memória seria louvada para sempre.

Sócrates: Ainda não tinha pensado sobre este detalhe, cada Diotina. Como és arguta!

Diotina: Os homens de corpo fecundo procuram as mulheres para se imortalizarem e celebrizarem por meio dos filhos. Aqueles que desejam procriar pelo espírito — pois a alma é mais fecunda que o corpo —, são os que chamamos de poetas e de inventores. Mas a parte mais bela da sabedoria é aquela que se refere à organização dos estados, a que denominamos política, justiça e economia. Sem essa organização, o amor entre as pessoas, na busca da imortalidade, seria impossível.[Diotina sai de cena pela penumbra].

Sócrates: Eis, caro Fedro e caros amigos, o que Diotina me disse. Ela me demonstrou que para se alcançar o belo e o bem não há outro guia melhor do que Eros. Por isso, afirmo que todas as pessoas devem louvar a Eros, como eu o louvo e cultuo. Por isso, caro Fedro, recebe esse meu diálogo com Diotina como um elogio a Eros, ou dá-lhe o nome que melhor lhe convier.

[Aplausos demorados. Ato contínuo, uma balbúrdia como que provocada por bêbados se fez ouvir. A flautista interrompe seu toque e grita.]

Agatão, para os escravos: Rapazes, ide ver do que se trata. Se for gente íntima, chamai para entrar; se não, dizei que a festa já terminou.

Alcebíades, bêbado, fora de cena: Agatão? Onde estás? É Alcibíades. [Alcibíades entra em cena, amparado pela flautista e por seus companheiros de farra, todo coberto de fitas, coroado de heras e violetas.] Boa noite, meus amigos. Aceitam a companhia de um homem que já bebeu muito? Ou querem que me retire, depois de realizar o fim de minha visita, que é o de coroar Agatão? Ontem, não pude aparecer. Mas agora estou aqui, cheio de fitas, para colocá-las na cabeça de um belo sábio, se posso dizer assim. [Risos gerais ]. Vocês riem, porque estou bêbado? Riam, mas sei que digo a verdade. Mas respondam: posso ficar? Beberão comigo?

Agatão: Fica, Alcibíades! Bebe conosco!

[Alcibíades entra, cambaleando e amparado, e coloca fitas na cabeça de Agatão. Sócrates se fasta para dar lugar ao novo conviva; este não o vê, e senta-se entre Agatão e Sócrates. Os outros acomodam-se como podem.].

Agatão, para os escravos: Rapazes, tirem as sandálias de Alcibíades. Ele será o terceiro conviva em nosso divã.

Alcibíades, voltando-se para Sócrates: Quem é este outro companheiro? [Reconhece Sócrates e recua]. Por Heracles, é Sócrates? Continuas me perseguindo, como é teu costume de surgir nos lugares em que menos te espero! Por que estás deitado justamente ao lado de Agatão, e não ao lado de Aristófanes, ou de qualquer outro bom de papo? Sempre te deitas ao lado do mais belo dos presentes!

Sócrates: Socorre-me, Agatão! O amor desse homem me causa vexames. Desde que nos amamos, não posso mais olhar para ninguém, nem conversar com nenhum belo jovem, pois este homem ciumento faz um escândalo e quase me agride! Cuida para que haja paz entre nós dois. Na loucura do seu amor, ele é capaz do impossível.

Alcibíades: Entre nós nunca poderá haver paz. Um dia me vingarei. Agatão, devolve-me uma dessas fitas, para eu coroar a cabeça formidável deste homem. Quero me prevenir para que ele não diga, mais tarde, que coroei somente a ti, e esqueci dele, que vence todos os homens com sua palavra. [Alcibíades recebe uma das fitas e coroa Sócrates]. Amigos, parece que estais em perfeito juízo. Temos de beber. Nomeio-me chefe dos bebedores, até que fiqueis bêbados. Tragam-me aquele vaso! [Enche o vaso com aproximadamente dois litros de vinho e bebe-o de uma vez. Enche-o de novo e dá a Sócrates]. De nada adianta dar bebida a Sócrates, amigos. Ele é capaz de beber qualquer quantidade de vinho sem ficar bêbado!

Erixímaco: E agora, caro Alcibíades? Que faremos? Ficaremos bebendo, sem falar nem cantar?

Alcibíades: Faremos o que quiseres, pois devemos obedecer aos médicos.

Erixímaco: Antes de chegares, tínhamos decidido que cada um, a começar pela direita, fizesse um elogio a Eros. Todos já falamos. Por isso, deves dizer algo. Depois, dirás a Sócrates que faça qualquer coisa que desejares, e ele, depois de cumprir a tarefa, o mesmo dirá a seu vizinho da direita, e assim sucessivamente.

Alcibíades: Mas não é justo comparar o discurso de quem está embriagado com o de quem está sóbrio. E, por acaso, vocês acreditaram no que Sócrates disse? Não sabem que o contrário do que disse é a verdade? E que, se eu louvar outro que não seja sua pessoa, homem ou deus, dar-me-á uma surra?

Sócrates: Respeito é bom e eu gosto. Eis no que dá a companhia de bêbados.

Alcibíades: Por Posêidon! Na tua presença, jamais louvarei outro, quem quer que seja!

Erixímaco: Pois então, caro Alcibíades, louva a Sócrates agora.

Sócrates: Queres fazer um elogio me ridicularizando? Que vais dizer?

Alcibíades: Dizer a verdade, se me deres licença!

Sócrates: Não só permito que se diga a verdade, como também exijo.

Alcibíades: Pois vais ouvi-la. Mas quero te pedir uma gentileza: se eu errar, corrige-me. No meu estado, é difícil enumerar as tuas excentricidades. Tentarei louvar Sócrates, e, para tanto, falarei através de símbolos. Ele poderá pensar que estarei tentando ridicularizá-lo. Mas não se trata disso. É que o símbolo me ajudará a dizer a verdade. Começo dizendo que Sócrates é como esses Silenos que fazem os estatuários, com flautas nas mãos, chifres e cascos, para servir de armários. Quando essas estátuas são abertas, vê-se um deus no seu interior.

Agatão: Tuas palavras traduzem a verdade, Alcibíades, mas traduzem também tua paixão.

Alcibíades: Que o seja, caro Agatão. Direi ainda que ele se parece com Mársias, o sátiro. Quanto à semelhança exterior, caro Sócrates, nem tu mesmo não duvidas. Mas és parecido com ele também no resto. És um irônico mordaz. Se negares, invocarei testemunhas. Negarás que és um flautista.

Sócrates: Negarei e todos testemunharão que não sou um flautista, belo Alcibíades.

Alcibíades: Mas és um flautista muito mais admirado que Mársias [O sátiro Mársias entra na penumbra tocando flauta]. Esse, com os sons de sua flauta, hipnotizava os homens, e ainda hoje se alcança o mesmo efeito com suas músicas. As melodias que dizem ser de Olimpo, a quem atribuem a invenção da flauta, eu digo que são de Mársias, seu mestre: suas músicas divinas são as únicas que satisfazem aqueles que procuram a comunhão com os deuses. A diferença entre tu e Mársias é que atinges os mesmos efeitos sem utilizares flauta ou avena, mas só a palavra.

Fedro: És um eloqüente orador, Alcibíades. É por isso que és um grande político.

Alcibíades: Não tão eloqüente como Sócrates, caro Fedro. Quando ouvimos um discurso, mesmo de um notável orador, não prestamos toda atenção. Mas quando ouvimos a palavra de Sócrates, mesmo que seja repetida por outro, todos — homens, mulheres e jovens — ficamos fascinados. Eu mesmo, se não estivesse bêbado, poderia invocar os deuses como testemunhas do efeito que seus discursos me causam. Ao ouvir Sócrates, meu coração bate como o dos sacerdotes dançarinos de Cibele [ditirambos entram em cena, na penumbra, fazendo danças acrobáticas], e meus olhos se enchem de lágrimas com sua palavras comoventes.

Erixímaco: Não pareces que estás bêbado, caro Alcibíades. Tuas palavras são sóbrias e sérias.

Alcibíades: Se assim for, caro Erixímaco, é de ouvir a sobriedade e a seriedade de Sócrates. Nem Péricles nem outros grandes oradores conseguiram me impressionar tanto, nem levaram meu espírito à contrição por não viver de maneira digna. Este nosso Mársias me comoveu e exortou tantas vezes que a vida se me afigurou insuportável. Não negarás, caro Sócrates, que isso é verdade.

Sócrates: Falas, Alcebíades; o vinho te dá esse direito.

Alcibíades: Suas palavras me levam à confissão de que, sendo imperfeito, deixo de cuidar de mim para me dedicar à política de Atenas. Diante de suas advertências, sou obrigado a fechar meus ouvidos, como se estivesse ouvindo uma sereia, e fujo para não continuar ouvindo-o até minha velhice. Ninguém acredita que me envergonho com facilidade. Isso ocorre somente em presença deste homem.

Pausânias: Todos nós, caro Alcibíades, envergonhamo-nos sob o olhar de Sócrates. Não é preciso nem ouvir sua voz.

Alcibíades: E eu não posso contradizer seus argumentos, nem pôr em prática seus conselhos. Quando me afasto dele, as multidões me fascinam com honrarias. Mas, quando o revejo, sinto vergonha de não ter cumprido o que lhe prometi: deixar a política.

Pausânias: Ninguém, ó Alcibíades, pode contradizer Sócrates.

Alcibíades: Já cheguei a desejar que ele não continuasse vivo, mas sei que minha angústia seria maior. Não sei como poderei viver sem esse homem, nem com ele. E muitos outros passaram pelo mesmo fascínio e pela mesma angústia, ouvindo o som de sua flauta! Ninguém, nenhum de vós, conhece Sócrates, mas eu vou mostrar-vos quem ele é.

Agatão: Mostra-nos, Alcibíades, como é o nosso mestre.

Alcibíades: Mostrar-vos-ei, meus caros condiscípulos. Podeis ter a impressão de que Sócrates ama os belos mancebos, que se deleita em conversar com eles e, embevecido, contempla-os. Seu aspecto dá a impressão de que se está defronte a um ignorante. Mas qual é o aspecto de Sileno? Exatamente este, enquanto no interior esconde um deus! Se alguém é belo, ele não se importa com isso. O mesmo acontece se alguém é rico, ou tem fama e glória.

Agatão: E nós, seus discípulos, o que somos a seus olhos?

Alcibíades: Nós mesmos poucos parecemos ser diante de seus olhos. Por isso passa o tempo a ironizar conosco. Mas, quando está sério e não se abre, não sei se alguém já entreviu as coisas divinas que há nele. Eu vi uma vez e me convenci de que se deve fazer tudo quanto Sócrates aconselha.

Erixímaco: Conta-nos, ó Alcibíades, essa tua experiência da revelação de Sócrates.

Alcibíades: Contarei. E para isso não me impedirá o vinho, mas, pelo contrário, me ajudará soltando-me a língua. Houve tempo, quando era jovem e belo, em que acreditei que Sócrates sentia por mim uma paixão. E pensei que, em troca de meus favores, ganharia de Sócrates sua sabedoria. Com essa intenção, uma vez, lá em casa, mandei o escravo sair e fiquei a sós com ele. Ficamos a sós e pensei que ele fosse falar comigo como amante e amado. Mas nada disso aconteceu. Sócrates conversou comigo normalmente, até o dia passar.Outra vez, convidei-o para fazermos ginástica, mas nada aconteceu. Noutras ocasiões, praticamos luta sozinhos. E nada mais acontecia.

Fedro: Quem ganhava a luta, caro Alcibíades?

Alcibíades: Sócrates, pois é forte como poucos bárbaros, e ágil como raros gregos. Até que, amante a perseguir o amado, convidei-o a jantar comigo. A princípio recusou o convite, mas minha insistência o convenceu. À primeira vez, quis sair logo terminado o jantar. Foi com decepção que o deixei ir. Tentei novamente e, depois do jantar, bebemos, conversando pela noite. Quando ele quis ir embora, convenci-o a ficar, argumentando que era tarde para sair. Atendeu meu apelo e dormiu no divã em que jantara, junto ao meu. Na sala, não havia ninguém além de nós. Revelo esse fato porque, ocultá-lo, seria uma injustiça contra Sócrates. Tenho certeza de que me perdoareis pelo que fiz e agora confesso.

Agatão: Continua, Alcibíades. Tua sinceridade nos comove.

Quando as luzes se apagaram e os escravos saíram, achei que a oportunidade havia chegado. E disse-lhe: — “Sócrates, estás acordado?” — “Estou” — respondeu-me. Prossegui na minha insistência — “Sabes o que desejo? És o único que merece me ter como amante, e penso que não tens coragem de te declarar. Acho uma tolice não te satisfazer neste caso, pois o que mais desejo é aperfeiçoar-me, e jamais encontraria uma ajuda mais eficiente que a tua, mais completa ainda através do amor”.

Pausânias: Esse teu desejo em relação a Sócrates, também já acometeu outros em relação a ele, querido Alcibíades. Mas não tiveram a tua coragem de se declarar.

Alcibíades: Sei que deve ter ocorrido o mesmo desejo com outros admiradores de Sócrates, caro Pausânias. Mas tanto a timidez como a coragem são próprias dos amantes. E nem todos dizem o que sentem à pessoa amada.

Pausânias: E que disse Sócrates ao ouvir tua declaração de amor?

Alcibíades: Ao ouvir-me, Sócrates respondeu-me irônico: — “Caro Alcibíades, não és um leviano. Estás vendo em meu espírito uma beleza que supera tua beleza física. Se procuras ter relações comigo para trocar beleza por beleza, tens o intuito de lucrar mais do que eu, pois queres adquirir o que é verdadeiramente belo, trocando ferro por ouro. Mas, esperto amigo, reflete mais sobre o caso, para que não valorizes demais meu pouco valor. Os olhos do espírito vêem melhor quando os olhos do corpo se cerram. Analisa o que é melhor para ti e para mim.”

Pausânias: E o que fizestes, sincero Alcebíades, depois dessa candente resposta?

Alcebíades: Em silêncio, levantei-me, agasalhei-o com minha manta [Na penumbra, um jovem se agasalha junto a um homem, abraçando-o para dormir], entrei sob o seu casaco, deitei-me lado a lado com ele, abracei esse homem divino, adormecemos e assim passamos a noite. Por esse acontecimento podeis julgar a personalidade de Sócrates. Pelos deuses e deusas, sabei que, do divã de Sócrates, não me levantei mais puro que se houvesse dormido com meu pai ou meu irmão. Apesar disso tudo, ele sempre permaneceu indiferente à minha pessoa, desprezando minha beleza.

Fedro: Bebe, Alcibíades; o vinho aumenta tua eloqüência.

Alcibíades: E este vinho é generoso como Agatão, caro Fedro. Mas, voltando a Sócrates: como eu deveria tratar este homem? Eu me sentia deprimido pelo desprezo, mas não podia deixar de admirar sua continência, seu autodomínio, seu caráter. Nunca pensei que pudesse haver homem de tanta temperança e sabedoria. Não pude me irritar com ele, nem ficar sem sua amizade, nem atraí-lo para mim.

Fedro: Foste com Sócrates à guerra, não é verdade, Alcibíades?

Alcibíades: Fui, e devo-lhe a vida e a honra. Sua temperança e sua têmpera são formidáveis, tanto no amor como na guerra. Participamos da expedição contra a Potidéia. Quando perdíamos contato com o grosso das tropas, e ficávamos sem alimento, Sócrates era o que melhor passava sem comida. Quando bebíamos, era o único que não se embriagava: ninguém jamais o viu bêbado.

Seqüência de vozes: Nunca vi Sócrates bêbado! — Sócrates é imune ao vinho!
— O vinho também respeita Sócrates!

Alcebíades: No inverno, andava sem agasalhos e descalço sobre a neve. Quando fui ferido [na penumbra, um soldado cai ferido e é socorrido por outro], ele salvou a mim e às minhas armas, e recusou o prêmio por bravura, rogando aos generais que o dessem a mim. Quando o exército se retirou destroçado de Délion, Sócrates saiu calmamente, olhando sobranceiro para os adversários, e ninguém ousou atacá-lo. Eis aqui, meus amigos, o que admiro em Sócrates.

[Aplausos].

[Um grupo de bêbados ruidosos entra na sala, interrompendo o discurso de Alcibíades, e começa a beber junto aos comensais. Fedro, Erixímaco e outros vão embora. A flautista toca. Sócrates continua a beber com os recém-chegados e fala, dirigindo-se a Agatão:

Sócrates: Caro Agatão, o poeta que escreve tragédias, também deve escrever comédias, pois a vida é composta das duas coisas, que muitas vezes se misturam. Escreve tragédias e comédias, Agatão. Fico ansioso por vê-las. Certamente ganharás outras honrarias como lograste recentemente. Escreve também comédias... [Agatão e os outros bêbados adormecem. Sócrates sai, seguido por Aristodemo. Pano começa a fechar, lentamente. Flauta cala-se.]

sábado, 17 de novembro de 2007

Música mestiça

O mundo lusófono é formado pela maioria das populações de Portugal, Açores, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Timor-Leste, Goa, Macau, Malaca, Brasil, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e outras praias de além-mar. Perfaz cerca de 230 milhões de falantes, o que eleva o Português à condição de quinta língua mais falada no mundo e terceira no Ocidente. Mas se trata de um grupo ainda pobre, sem a força de uma economia poderosa que venha a conferir prestígio a seus componentes. Por outro lado, a Língua Portuguesa ainda não é veículo de grandes obras científicas e filosóficas em número significativo, e para ela ainda faltam ser traduzidos textos importantes do acervo universal. Em que pese já possuir uma respeitável literatura, essa se ressente da modéstia econômica, política e bibliográfica da Língua Portuguesa e dos países por ela representados.

O sociólogo brasileiro e nordestino Gilberto Freyre nomeou esse universo como “luso-tropical”. Em sua obra voltou-se para “o estudo das relações antropossociológicas entre europeus e não-europeus nas áreas tropicais”. Freyre diferenciou Portugal dos outros países colonizadores, pois, segundo ele, o colonizador português conseguiu mestiçar seu sangue e sua cultura com os povos submetidos dos trópicos. Essa mestiçagem foi conseguida à força de violência; porém, deu resultados mais aceitáveis que os apartheids. Lamentavelmente, a tese de Freyre serviu de embasamento ideológico para a ditadura salazarista e a demora de Portugal em prosseguir com sua política colonial. A saída tardia (e, assim, apressada) de Portugal das suas colônias não permitiu a formação de uma comunidade política luso-tropical, nos moldes da Comunidade Britânica, de que hoje Moçambique faz parte — testemunho de que as nações modernas sentem necessidade de associação.

O fenômeno da mestiçagem étnico-cultural vai mais além de que “as relações entre europeus e não europeus nas áreas tropicais”, pois abrange, também, as relações intertropicais, no período pré e pós-colonial. É o caso das relações imemoriais nos espaços mais expressivos da presença portuguesa na África, digo entre Angola e Moçambique, praticadas pelos primeiros descendentes do Australopitecos, pai da Humanidade. Essas relações pré-coloniais foram facilitadas pela calha cultural comum do sistema fluvial Congo/Zambeze, rios nascidos na mesma fonte (Meseta do Zambeze) e que defluem em sentidos opostos para desaguar em oceanos distintos, o Atlântico e o Índico, formando, no meu dizer, um só rio transoceânico. E os rios foram as primeiras estradas do homem que, ainda quando não sabia navegar, seguiu suas margens à pé.

Como relação colonial é exemplo o êxodo africano para o Brasil, principalmente dos pólos emissores Angola e Moçambique. No destino brasileiro se gerou um povo mestiço dos três estoques raciais (os estoques amarelo, negro e branco), formando, conseqüentemente, uma cultura universalmente mestiça. Algo dessa cultura mestiçada refluiu para a Metrópole, como o fado, nascido em território brasileiro de pai angolano (lundu) e mãe portuguesa (modinha), no tempo do reino unido Brasil-Portugal-Algarve. Levado pelos retornados à Metrópole, lá cresceu e transformou-se por força das influências locais e heranças outras — a exemplo da moura, por sua vez já africana.

A formação cultural brasileira tem esse caráter sincrético, pois o Brasil é fundamentalmente mestiço, à exceção de áreas restritas que recepcionaram novos colonos europeus. Mesmo assim, essas áreas deram vez ao nascimento de nomes notáveis da música mestiça brasileira como Lupiscínio Rodrigues e Caco Velho (Matheus Nunes), esses no estado do Rio Grande do Sul, na fronteira meridional. Assim como o Brasil, todo o mundo lusófono tropical tem caráter mestiço e sincrético.

No universo lusófono têm surgido iniciativas isoladas e espontâneas de mestiçagem musical. A toada Mãe-preta/Barco negro, de Caco Velho/Piratini/David Jesus Mourão-Ferreira é exemplo — em que pese ter sido provocada pela censura salazarista que tirou do rádio o poema original brasileiro (Mãe-preta), de forte cunho social e político, para dar lugar à lírica amorosa de Mourão-Ferreira (Barco negro). A partir daí, Mãe-preta/Barco negro pode ser visto como um divisor de águas ideológico na música mestiça luso-tropical: a vertente de Mãe-preta flui para a esquerda, a de Barco negro corre para a direita. Mãe-preta teve grandes momentos no arranjo da interpretação de Ana Faria (cantora e percussionista), onde se destaca o som de uma chibata (que está presente na letra), assim como no arranjo da interpretação de Lissandra Lima, onde também se pode notar, na percussão, um efeito disfarçado de chibata, um tanto fora de cena (em off). Algo semelhante foi utilizado pelo percussionista Dalú na primeira gravação que Mariza fez de Barco negro (CD Fado em mim), onde se ouve, nítido, o som de uma chibata; mas esse artifício não pode ser associado à lírica de Mourão-Ferreira, pois sua letra não faz nenhuma referência aos procedimentos e sofrimentos da escravidão no Brasil. Destaque semelhante na percussão se notará na primeira gravação de Transparente (Abreu Lima/Rui Veloso), quando o tambor (leia-se elu) de Marcelo Costa se manifesta ao serem pronunciadas as palavras "minha avó negra".

O gaúcho e negro Caco Velho ainda compôs, para Amália Rodrigues, um sincretismo de bailinho (português) e de samba, como é a peça Conselho, e outras experiências nos anos cinqüentas. Luís Gonzaga, ainda nos anos cinqüentas, criou o fado-baião Ai, ai Portugal; Dorival Caymmi também fez sua parte, e compositores recentes, como Chico Buarque e Caetano Veloso, fizeram fado sincrético. Meu amigo e conterrâneo Sivuca experimentou o ritmo sul-africano upakanga (acrescente-se a isso o fato de ter sido maestro de Miriam Makeba e do Duo Ouro Negro). Uma dúzia de compositores estão reunidos no LP Fados Brasileiros (editora Marcus Pereira), na voz de Paula Ribas. E Gal Costa tem um grande momento na tropicalização de Milho verde, tradicional português, com arranjo de Gilberto Gil (o próprio milho é uma contribuição das culturas americanas à economia européia). A mestiçagem musical também se manifesta em Cabo Verde, com Sara Tavares, Cesária Évora e Tito Paris, e em Angola, com Pedro Flores e Felipe Mukenga.

Portugal se faz presente de forma notável na música nova lusófona, onde se destacam o clima tropical dos arranjos do brasileiro Jacques Morelenbaum no CD Transparente (Mariza, 2005) — principalmente na faixa título de Paulo Abreu Lima/Rui Veloso e nas peças Fado português de nós (Paulo de Carvalho), Fado tordo (Fernando Tordo) e Toada do desengano (Vasco Graça Moura/Franklin Godinho). Acrescente-se a isso o fato do CD Transparente ter sido gravado com instrumentistas brasileiros, no Rio de Janeiro, a antiga capital do Reino Unido Brasil-Portugal-Algarve.

Mais outros juntaram seu engenho e arte à expressão dos povos luso-tropicais, que, por ignorância ou injusto esquecimento, deixo de citá-los aqui. E nem tudo é afro na mestiçagem luso-tropical. Não se pode esquecer as Índias, quer Ocidentais, quer Orientais, e as ilhas, e as Ásias e Oceanias. Há mestiçagens inclusive ainda por fazer, como a inclusão cultural dos povos amarelos arredios que sobreviveram ao contágio europeu e habitam os desertos amazônicos do Brasil.

Entendo que o fenômeno da mestiçagem musical de expressão portuguesa (manifestada, no passado e no presente, de forma espontânea), vem atender ao reclamo da identidade étnico-cultural do mundo de fala lusitana, identidade necessária quer internamente, entre seus povos, quer externamente, diante das nações — onde os povos luso-tropicais, de culturas tão ricas, não têm o destaque merecido, ainda reduzido pelas limitações políticas referidas no início desse texto.

O sucesso e o resultado como norte cultural obtidos no CD Transparente, a que se seguiu o espetáculo itinerante de Concerto em Lisboa, devem seu crédito aos esforços somados da cantora Mariza, do maestro Jacques Morelenbaum e de uma plêiade de compositores e de instrumentistas. Tanto o CD, gravado em estúdio, como o DVD do espetáculo vêm atender à necessidade acima referida de identidade, de expressão e de comunicação entre os povos luso-tropicais e desses povos para com o mundo. À Mariza cabe o mérito da iniciativa de convocar os compositores e o maestro Jacques Morelenbaum para essa navegança da música lusófona; ao maestro, além dos arranjos e de seu desempenho pessoal no violoncelo, credite-se também a escolha dos músicos brasileiros que fizeram a banda na gravação de estúdio, pois no Concerto tocaram os músicos permanentes de Mariza e a Orquestra Sinfonieta de Lisboa.

Assim, maestro e músicos, quase todos brasileiros, somados à cantora de nação Moçambique, ela já mestiça luso-afro-hindu, mais os compositores portugueses e a parceria luso-brasileira de Barco negro (Caco-Velho/Piratini/D. J. Mourão-Ferreira), fizeram a mestiçagem musical do CD Transparente, onde se ouve fados com arranjos para chorão e clarineta, como na Toada do desengano. Até agora, Transparente foi o momento em que a mestiçagem musical lusófona alcançou sua expressão maior. É de se esperar que esse tom venha a ter continuidade na música portuguesa moderna, em futuras gravações da própria Mariza e de outros expoentes de aquém e de além-mar. Sabe-se que o próximo disco da cantora será produzido pelo maestro espanhol Javier Limón, de reconhecida competência. Mas a mestiçagem é geneticamente irreversível.

A música tradicional portuguesa também deve e pode ser apresentada juntamente com a música mestiça, como não deixou de ser feita. A música tradicional é o banco genético de onde se extraem os elementos relativamente puros para a formação da mestiçagem musical. Assim, o trabalho de outros artistas, preocupados com o purismo, não deve ser desprezado, pois é do encontro dos puros que nasce o mestiço. Eles, os puristas, querendo ou não, vêm a ser a fonte da mestiçagem. Alguns, mesmo quando puros, são ecléticos quando reúnem, no seu trabalho, peças de várias culturas. Mas é preciso distinguir ecletismo de mestiçagem. Artistas portugueses há que estão fazendo um trabalho eclético, cantando músicas de origens diversas, inclusive brasileiras; esse é um trabalho necessário e nem menos nem mais importante que o da mestiçagem musical, mas um precioso trabalho que ainda não pode ser considerado como um resultado mestiço, pois suas peças, antípodas que sejam, não têm o hibridismo cultural que vem caracterizar a música mestiçada.

Na linha da lusofonia mestiça ainda está a se esperar uma gravação, numa só peça, da versão original de Mãe-preta (Caco Velho/Piratini), e, em continuidade, da segunda versão, que é Barco negro (Caco Velho/Piratini/David Jesus Mourão-Ferreira). Até hoje, as duas peças têm sido executadas apenas numa versão ou noutra, porém nunca foram reunidas numa só faixa. As toadas Mãe-preta/Barco negro são um exemplo sui generis da música mestiça luso-tropical, e estão à espera de uma voz que as interprete como uma só canção.
17-11-2007

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Os filhos de Franco

— Por que não se cala? — perguntou a Europa a América.
Há meio milênio a Europa tenta calar a América. Nesse ínterim, exterminou três grandes civilizações — Asteca, Maia, Inca. Queimou todos os seus escritos, degolou os seus sábios, exterminou milhares de povos.
A ordem do rei da Espanha, Juan Carlos I, ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, é um procedimento antigo. O rei não disse nada de novo ao presidente. Apenas repetiu a postura arrogante do invasor, exterminador, escravizador e colonizador europeu diante dos habitantes do continente amarelo que teimavam sobreviver.
O continente que os europeus chamavam de novo, e que batizaram de “América” na pia dos degolados, era habitado de norte a sul por milhares de povos do estoque racial amarelo, desde há muitos milhares de anos. Mas a Europa disse a si mesma que “descobriu”, ou que “achou” um continente à deriva no mar e no tempo.
Sob as bênçãos do papa e da cruz, os povos do continente amarelo foram exterminados para ceder seu espaço à Europa expansionista. Os sobreviventes foram escravizados, suas mulheres apresadas para fazerem mestiços. E as línguas — milhares de línguas — receberam a ordem de calar-se, extintas e reduzidas ao silêncio.
O incidente em comento aconteceu na recente XVII Cúpula Ibero-Americana, realizada semana passada em Santigo do Chile, entre 8 e 10 deste novembro de 2007. O encontro reuniu 22 nações, representadas por seus enviados. A Espanha compareceu com força total: o ministro de Assuntos Exteriores, Miguel Ángel Moratinos, o presidente do governo, José Luiz Rodrigues Zapatero, e o rei Juan Carlos de Borbón Y Borbón.
O presidente do governo espanhol não gostou que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, qualificasse o ex-presidente da Espanha, José Maria Aznar, de “fascista”. Ora, o mundo todo sabe que o atual reino da Espanha foi uma recriação do caudilhíssimo Franco, o fascista que, apoiado por Hitler e Mussolini, logrou extinguir a república espanhola e impor ao povo espanhol uma ditadura de meio século, a que se seguiu o atual “reino”.
Ora, é publico e notório que o caudilhíssimo Franco chamou a si a guarda do menino Juan Carlos e criou o futuro rei, educando-o ao seu estilo. O príncipe Juan Carlos formou-se nas três academias militares de Espanha — da marinha, da força aérea e do exército. No juízo do caudilhíssimo, estava, assim, apto a governar as espanhas. E foi com essa educação que o bi-Borbón brandiu a mão a voz para o presidente da Venezuela, sublinhando o gesto do presidente espanhol que viera em defesa do ex-presidente Aznar, rotulado de fascista por Chávez. — o presidente eleito pelo povo venezuelano que sobreviveu à invasão, ao extermínio, à colonização e à escravização espanhola.
O presidente Zapatero exigiu mais respeito da parte do presidente Chávez, lembrando-lhe que Aznar fora eleito pelo povo espanhol. Mas o rei nem deixou o presidente Chávez responder à colocação do presidente Zapatero, ordenando: “Por que não se cala?”
Os embaixadores espanhóis extrapolaram as regras de uma assembléia, quando falaram em dueto, nas vozes de seu presidente e de seu rei. Foi como se o rei não considerasse bastante a delegação de seu presidente. Quer dizer: a Espanha falou com as vozes de dois chefes de estado, simultânea e orquestradamente. Fica a pergunta: quem governa a Espanha, quem a representa, o presidente do governo ou o rei de Franco?
Mas a voz do povo americano não será silenciada pelo vil garrote espanhol, fascista e franquista.

13.11.2007

Crônicas do livro "Tremores da terra"

HIROSHIMA, MEU XODÓ

Advinhe quem forneceu urânio para as bombas que mataram Hiroshima e Nagasaki.
Este mês completou 42 anos do massacre: três dias após o Cinco de Agosto, data do aniversário da Paraíba, de sua Capital e da nossa Padroeira, a Senhora das Neves. A novena acabou na quarta-feira, mas a festa profana foi até o domingo. No sábado, passou-se o aniversário de Nagasaki e Hiroshima.
Quem se lembrou de rezar uma ave-maria para as almas penadas e depenadas pelas bombas do Tio Sam?
Foram 250 mil (duzentas e cinqüenta mil) pessoas desintegradas em poucos segundos. Em Nagasaki, as colinas da cidade ainda quebrantaram a quebrada da bomba. Mesmo assim, 50 mil (cinqüenta mil) pessoas desencarnaram, literalmente, antes que seus olhos atônitos piscassem diante do caos.
Mas, em Hiroshima, na planície de Hiroshima, na praia de Hiroshima, a bomba estalou, livre e solta, o clarão que ofuscou até o Sol Nascente.
A primeira notícia foi o silêncio da Rádio Hiroshima. Ela saiu do ar quando o capitão Tibbets liberou a ordem para a desova da "Little Boy" do ventre de sua "Enola Gay".
Na Segunda Guerra,
Tio Sam levava
shelita do Nordeste.
A bomba cristã era batizada com um nome gaiato, assim como o avião de Tibbets, a superfortaleza-voadora B-29. Na manhã clara do oito de agosto de 1945, as duas Boeings voavam tranqüilas no céu japonês; era um céu azul-zen, limpo. A força aérea do Japão já havia sido praticamente destruída, e nenhum caça foi receber as Boeings. Nem um zero. Sequer o foguetório antiaéreo saudou o vôo soberbo dos quadrimotores. De repente, o caos.Banzai, sinos de Nagasaki! Benzei, campanários do Mundo!
Na manhã de oito de agosto de 1945, a humanidade entrou na Era Atômica com o selo do sangue de centenas de milhares de vítimas. Fez 42 anos neste agosto corrente, quando a Paraíba comemora seus 402 anos de fundação. A festa da padroeira demorou-se até um dia após o aniversário de Hiroshima e Nagasaki, mas ninguém se lembrou daquela data triste.
Advinhe quem forneceu, sem saber, o urânio para as bombas que mataram Nagasaki e Hiroshima.
Deu no jornal que a Paraíba possui uma jazida de doze mil toneladas de urânio, no município de São José de Espinharas, a duas léguas da cidade de Patos. Possui mais. Na cidade de Pocinhos, a igreja Matriz guarda, debaixo da nave, uma jazida de urânio. A província da qual faz parte São José de Espinharas vai longe Seridó adentro.
Durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo antes do Brasil entrar na dança, Tio Sam já vinha buscar sheelita no Proeminente Nordestino. O Rio Grande do Norte fornecia em abundância; mas, o Tio levou também a shelita de Santa Luzia do Seridó paraibano. Mais tarde se descobriu que a shelita de Santa Luzia não era só shelita. O gringo, calado, levou urânio.
Em agosto do próximo ano, meu bom sacristão de Santa Luzia, no dia oito, coloque, entre as intenções da Missa, as almas vaqueiras de Nagasaki e Hiroshima. São duas paróquias longe daqui, onde mataram o povo de manhãzinha. O sucesso se deu com a pólvora de Santa Luzia.
Naquele tempo, só o gringo, o tedesco e pouca gente mais sabia o que era urânio. Mais tarde, o governo brasileiro considerou o urânio estratégico. Todo bem precioso é estratégico. O ouro, porque mais caro, é mais estratégico que o petróleo, até mais que o próprio urânio.
Com ouro se compra urânio, petróleo, governos e legisladores. Nesse sentido, todos os metais nobres, todos os minerais do Brasil devem ser considerados, tratados e explorados como estratégicos. Sejam os serrotes de ouro de Princesa, a serra de urânio de São José de Espinharas, ou a sheelita matadeira e mortífera de Santa Luzia do Seridó.

18-08-1987

ESPERANÇA

Seu último leirão foi aberto por seus próprios braços e semeado com seu próprio corpo. Assim caroço, José Soares carregava o germe imortal da esperança. O ancião e decano das 34 famílias da fazenda Bela Vista morreu de estranha causa, difícil de ser qualificada pelos médicos legistas. O trator dos novos proprietários da fazenda passou por cima da casa de José Soares: eram duas águas inclinadas sobre as paredes de taipa, quase continuidade do chão. Mais acidente que mesmo casa, tão natural na superfície da terra.
Tantos anos sob a cumeeira singela (seu único abrigo). Tantos anos abrindo leirões de onde brotavam a vida. E José Soares viu sua casa e sua roça trituradas sob as esteiras do trator comprado com dinheiro emprestado pelo povo, com juros subsidiados pelo povo... para destruir a roça e a casa do povo.
O coração de José Soares não resistiu à esteira da injustiça. O trator, que deveria multiplicar o trabalho dos homens como ele, braçais do campo, começava por liberar mão-de-obra. E, máquina de guerra em vez de instrumento de paz, arremetia contra os frutos do trabalho dos homens, demolindo o teto de velhos e crianças.
De todos os moradores da fazenda Bela Vista, José Soares carregava, provavelmente, a maior safra de traumas. E sucumbiu ante a nova praga que devastava os campos e abatia a casa de sua gente. Por coincidência, a fazenda Bela Vista está situada no município chamado "Esperança". O nome foi o padre Ibiapina (antigo missionário do Nordeste) que traduziu da fala cariri. Ou verteu para a fala cariri, pois os povos primitivos têm dificuldade de criar conceitos abstratos. Assim, babani-buié, ou banabuié, vem significar "esperar grande". Se o índio criou, ou se aprendeu de Ibiapina, nem o antropólogo Elias Borges saberá. O fato é que a expressão deu nome ao lugar, primeiramente como "Banabuié". Depois, o topônimo mudou para "Esperança", no português de Ibiapina.
O fato de o recente despejo estar ocorrendo em um lugar que leva o nome de "Esperança", é cruel coincidência. Mas em qualquer Paraíba, em qualquer Pernambuco (ou em todo João Cabral), o fato é corriqueiro. Os tratores estão sendo usados mais para desmanchar roçados que para plantá-los. O que interessa, ao novo latifúndio, é terra para soltar boi. E, onde pasta o boi, o homem é um intruso. Mesmo que tenha chegado primeiro de que o boi ao local. Agora, o boi é do dono da terra, e tem prioridade sobre os antigos inquilinos. Isso é ainda mais lamentável quando se sabe que a agricultura é perfeitamente conciliável com a pecuária, o capim podendo ser plantado em consórcio com diversas lavouras.
Os tratores, um dia esperados como esperança para o campo, aparecem como a mais medonha das pragas, conduzidos pelo irmão-lobo. Pois o patrão –o opressor, o lobo do homem — é também irmão desse homem. O mesmo sangue singra nos sonhos da senzala e da casa-grande. Os sonhos devem ser diferentes, mas navegam o mesmo rio, levados pelo sono que acalanta injustos e injustiçados, dádiva de Deus aos seus santos e pecadores.
As famílias tangidas da Bela Vista, onde irão morar, trabalhar, viver e sonhar? Onde repousarão suas cabeças –como as raposas e as aves do céu–, sem covas e sem ninhos?
O decano da comunidade, José Soares, já recebeu o derradeiro leito. Outros deverão cavar as trincheiras da esperança.

13-02-1987


O MENINO NA PRAÇA

Muitas coisas ficarão para sempre na memória. O túnel da barraca, a lona preta, mais preta que as telhas enegrecidas pela fumaça do fogão da casa antiga que ficou no sítio, abandonada às pressas; os caibros tortos da barraca cheia de gente que era vizinha e que, de repente, passou a morar junto, unida pelo frio, pelo medo, pela coragem.
A umidade da esponja dos colchões, saturados pelo chão molhado, não secará nunca, mesmo depois que as últimas lágrimas tenham sido enxugadas e até consoladas. Nunca a chuva será tão forte, tão constante, tão fria, tão ruidosa como na lona escura da barraca cheia de gente, medo, esperança.
Tudo ficará molhado para sempre na lembrança. A coberta, a roupa, a tosse, o soluço de tantos acalantos. Sempre haverá um menino tossindo numa noite muito fria, chuvosa, sob a lona preta da barraca longe de casa.
Uma praça estranha, com gente passando e parando. Uns homens de ferro, sempre na mesma posição, indiferentes à chuva e à polícia. Uns homens de paletó de ferro, sem barraca, parecendo donos da praça. Aqueles homens de ferro, que não corriam da chuva nem do soldado, ficarão para sempre na memória.
A zabumba, o ganzá, a ciranda, os meninos dançando com as pessoas grandes, o povo cantando cantigas que ficarão para sempre, inesquecíveis. A viola, a moça cantadora, a lua que a chuva deixava. As palmeiras eram muito grandes, maiores que o soldado e os homens de ferro. As palmeiras chegavam perto da lua com suas folhas tremendo nas alturas. As palmeiras, também tremendo de medo, ficarão plantadas para sempre na noite longe de casa.
Um dia, tiveram uma casa numa roça verde como aquela praça.
Veio o novo dono da terra, de tudo, com a polícia e o trator, e todos tiveram que sair depressa. Na noite que choveu mais forte que o medo, tiveram que sair depressa para a casa grande junto da praça. Veio o caminhão, o soldado dando no pai com o cacete grande, de matar bode. A mãe deu um passamento. Ninguém para ouvir seu choro, nem os homens de ferro que pastoravam a chuva e o medo.
O corre-corre, as panelas quebradas, a mão do soldado, a mudança para a casa que chamavam "quartel". O pai obrigado a
deitar no chão, apanhando de novo, o cacete de matar bode, o soldado. A mãe indo verter, o soldado junto. Como a cantiga e a reza, o medo ficou decorado.
Depois, outra vez na praça. Os homens de ferro ainda estavam lá, ouvindo o comício. O pai, os vizinhos do sítio longe e antigo levantaram outras barracas de lona preta, iguais às que o soldado rasgou. Acenderam outro fogo e outra lua mais alta para o soldado não levar, como levou as latas de comida. Tomou o leite depressa, antes que o soldado quebrasse a panela. Leite da cor do medo, coalhado para sempre.
As pessoas grandes conversavam baixinho, mas dava para ouvir. Umas diziam que voltariam para a casa do sítio, o juiz ia deixar. Outras, falando ainda mais baixo, diziam que o soldado ia voltar, quando a chuva passasse, de noite. Depois, as pessoas grandes rezavam ao Pai do Céu. Diziam que o soldado matou também o Filho do Pai do Céu, mas que ele envivecera de novo, como a lua. Sabia da história, crucificada na memória.
Havia uma cruz na praça. Tinha medo que pregassem alguém nela, de noite, na chuva, para sempre.

18-07-1987



FREIRE, O FERMENTO

Um dia após o aniversário da Independência do Brasil, o ministro da Reforma Agrária e seus assessores mais próximos morreram em circunstâncias trágicas e misteriosas. O campeão da reforma agrária morreu da mesma forma que o sueco Dag Hammarskjöld, secretário-geral da ONU.
Dag dirigia-se à terrível África do Sul para ver o problema do apartheid. Cristão e poeta, Dag não se conformava com a situação subumana em que vivia, e ainda vive, a maioria negra (e nativa) da África do Sul. Mas o avião de carreira em que voava explodiu antes que o profeta da comunhão das raças chegasse a seu destino. Até hoje ainda não se esclareceram as circunstâncias da morte de Dag e de todos os passageiros e tripulantes do avião.
Do grande poeta sueco ficou o pensamento que bem definiu sua forma de sentir e viver: "se queres aventura, terás aventura –na medida da tua coragem–; se queres sacrifício, serás sacrificado –na medida da pureza do teu coração."
Assim como a tragédia de Hammarskjöld, o sacrifício de Marcos Freire talvez demore a ser explicado. Mas, um dia, a verdade se revelará à luz da História. O Brasil já vive novos tempos, e crimes que fizeram vítimas nas pessoas de seus mártires, na luta pela real independência do País, já se revelam aos conhecimento da opinião pública.
O acidente em que morreu o ministro da Reforma Agrária será mais uma oportunidade de o presidente Sarney testar os dispositivos de segurança da democracia brasileira. A grande ocasião foi a morte do presidente eleito Tancredo Neves, falecido em vésperas de sua posse — como o vice-governador da Paraíba, Raymundo Asfora, suicidado nove dias antes de assumir o cargo.
Quando Tancredo morreu, os dispositivos de segurança da recente e ainda precária democracia brasileira não tinham sido inaugurados. A morte do presidente eleito não foi suficiente para cortar o cordão umbilical que liga os serviços de inteligência à ditadura militar ainda insepulta. O velho mineiro pode até ter sido vítima desses serviços, ditos de inteligência, que mataram tantos brasileiros durante o vintênio de exceção.
As explicações sobre o desaparecimento de Marcos Freire e de toda sua equipe não podem ficar em suspenso — como os fatos que levaram à morte o general Castello Branco, quando sobrevoava o Ceará. O jatinho da FAB em que Freire voava, exclusivo do transporte de autoridades, pilotado por um coronel, assistido por um serviço de manutenção preventiva, não podia explodir facilmente –como um teco-teco paisano. As bruxas estavam soltas em plena comemoração da Semana da Pátria.
A quem interessava a morte de Marcos Freire?
—Aos incomodados e ameaçados pela perspectiva de uma reforma agrária, mesmo que tardia e limitada, quando o Brasil elabora uma nova constituição. A área conflitada, que Marcos Freire queria sobrevoar, era uma das tantas que despertavam a atenção do ministro, voltada para as áreas improdutivas do País.
Marcos é morto. Mas o fermento do seu coração há de levedar a terra que queria do povo.

11-10-1987


SETE PALMOS

Quem ler o Decreto-Lei nº 2363 irá entender porque o avião em que voava Marcos Freire caiu. Neste país de 8 milhões e 500 mil km², simplesmente não havia terra para o ministro da Reforma Agrária pousar. Depois que Marcos Freire foi morto, mataram o Incra. Eliminaram, por decreto, a possibilidade de reforma agrária no Brasil.
O Nordeste, por exemplo, ficou praticamnte imune à reforma agrária. Só poderão ser desapropriadas terras inexploradas, com área superior a 500 hectares. Só se for na plataforma oceânica, onde os sem-terra poderão cultivar sargaços –com mercado garantido em Portugal e no Japão.
Depois que Freire
foi morto,
mataram o Incra.
Os sem-terra terão de fazer como os jegues no Rio Grande do Norte. Tangidos do Seridó, os jegues devolutos foram dar no sertão à beira-mar do Mossoró. Lá, eles pastam o sargaço na vazante de Areia Branca e Tibau. Os sem-terra terão de fazer como as baleias e os golfinhos fizeram há milhões de anos. Abandonar o chão inóspito e galgar as profundas do mar. Os sem-terra terão de chorar seu lamento, como os magros onagros no galope à beira-mar de Tibau. Cantar o baião do escravo Ignácio:

Há dez coisas neste mundo
que todo mundo procura:
é dinheiro, é bondade,
água fria e formosura;
cavalo bom e mulher,
requeijão e rapadura,
morar sem ser agregado,
comer carne com gordura.


Enquanto a tecnologia das fazendas submarinas não vem, os sem-terra terão de fazer guelras dos bofes e ganhar os grotões do mar-oceano. Eles estarão, por um tempo, a salvo. Até que um dia sejam grilados, náufragos da terra e do mar.
Um dia, os peixes ganharam asas e aprenderam a cantar. Alguns chamam a Seca, como acauã; outros cantam a morte, no silêncio de rapina. Os sem-terra cantam a gemedeira, ai-ai, ui-ui, subcutânea à viola. Quando os sem-terras voarem para a Lua, ela estará minguante. Isto é, se não cortarem suas asas, como fizeram ao ministro da Reforma Agrária, ai-ai. Quando os sem-terra voarem para a Lua, lá encontrarão o dragão do latifúndio, ui-ui, e São Jorge recolhido em prisão domiciliar, no céu.
Não há lugar para os sem-lugares. A lei capenga fez minguar a Lua já encoberta pelo chapéu do capanga. Eles, os sem-lugar, foram banidos da vazante, foram banidos pelo capanga e a lei. Não há espaço para os sem-passos. Para eles, o sem-eiras, tem que haver uma solução final, uma cova comum, pois não há onde tanta gente expirar, os sem-ar.
Não surpreenderá ninguém um decreto que restrinja os sem-lugar a seu canto. O espírito da lei rezará esse cantochão, amém para os sem-além. Nos termos da lei, será criado um quinto ponto cardeal para os sem-norte, o ministério cultivará uma flor-dos-ventos para os sem-rosa. Não há vaga para eles nos canteiros de trabalho
De acordo com o milhar 2363, o jogo acabou para os sem-sorte. Não há lugar para os sem-Marcos.

5-12-1987

MORRER PELO BRASIL

O Brasil é mais perigoso na selva: os índios continuam a ser exterminados pelo invasor europeu. Na semana que findou foi a vez dos ianomamis. Uma aldeia inteira massacrada, a começar pelas crianças, estripadas e decapitadas à vista dos pais prisioneiros. Depois mataram os adultos, homens e mulheres, a tiros, para em seguida decapitá-los. Total da chacina: meia centena de pessoas inocentes, inofensivas, legítimas proprietárias do espaço que não tomaram de ninguém — pois o índio, quando chegou ao continente americano, encontrou a terra inabitada pela espécie humana.
O Brasil é mais perigoso nas cidades: os meninos de rua continuam a ser exterminados pelos adultos. No mês que findou foi a vez dos meninos da Candelária, no Rio de Janeiro. Eles já vinham sofrendo uma violência: o abandono ao próprio azar. Habitavam a terra de ninguém, calçada pública dos passantes que somos. Os meninos abandonados ao sono foram massacrados enquanto dormiam. A polícia acordou-os para o fuzilamento no meio da noite. Como aconteceu aos meninos ianomamis, o que mais importa não é o total da chacina, mas o total da dor.
O Brasil é mais perigoso nos campos: trabalhadores rurais são assassinados, milhentos, nas safras da morte, nos quatro pontos cardeais do latifúndio. São abatidos, ainda, sindicalistas, advogados e lideranças políticas e religiosas que se aliam na defesa dos camponeses. Tempo desses, no Brasil Central, a capangagem do latifúndio juntou e cercou uma centena de camponeses — homens, mulheres e crianças– durante dias e noites, matando-os de fome e sede.
O Brasil é mais perigoso nos rios: 80 garimpeiros (inclusive suas famílias) foram fuzilados numa ponte sobre o rio Tapajós, no Pará, pela polícia. Eles tinham obstruído a ponte em protesto contra o despejo de seu garimpo. O governo precisava desobstruir a ponte para dar espaço e fluxo ao grande capital. Os garimpeiros e suas famílias foram fuzilados, e seus cadáveres foram ocultados na mata. A imprensa nacional denunciou o fato. Mas, como nos crimes mais medonhos do Brasil, nada foi apurado.
O Brasil é mais perigoso no mar. A barca virou com uma centena de pessoas que estavam comemorando a passagem do ano, na baía da Guanabara. Quase todas morreram. O dono de outra embarcação negou-se a prestar socorro. Os passageiros eram ricos, gente da classe dominante. Minutos antes da tragédia, a barca superlotada havia sido abordada pela fiscalização da Marinha. Conversa vai, a barca foi em frente e ao fundo. O fato repercutiu internacionalmente, mas os responsáveis estão soltos, a barca foi resgatada ao mar e já navega outra vez.
Fatos similares já aconteceram antes, na mesma baía da Guanabara, onde uma barca "cantareira " afundou e afogou mais de cem passageiros; idem no rio Amazonas, perto de Belém do Pará. E na construção da ponte Rio-Niterói? Só em um acidente (censurado pela ditadura), 40 (quarenta) operários foram sepultados para sempre no cimento das fundações — como os rebeldes que se recusavam ao trabalho na muralha da China.
O Brasil é mais perigoso nos lagos. Durante as comemorações da Semana do Exército, na Paraíba, um barco virou na lagoa do parque Solon de Lucena, matando 40 (quarenta) civis — a maioria crianças– mais alguns militares. Aqueles barcos infláveis são muito perigosos, pois não têm lastro nem quilha, o que os deixa sem estabilidade. Os passageiros têm de ter disciplina para se manter nos seus lugares, embarcando e desembarcando ordenadamente; se não, a canoa vira. Aquele barcos são feitos para uso de soldados na travessia de rios e desembarque de praias. Mas o Exército usou a barca para fazer propaganda à custa de crianças. Resultado: morte.
O Brasil é mais perigoso no cárcere. A Polícia Militar de São Paulo invadiu o presídio de Carandiru e matou 111 (cento e onze) presos, metralhando-os nas celas. Como requinte, retardaram a entrada do socorro médico, assim como a saída dos feridos, para que não houvesse sobreviventes.
Quando e onde será o próximo massacre?

22-08-1993